31/10/2016

Paulo Freire

"É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática." Paulo Freire

"Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes." Paulo Freire

29/10/2016

500 - Os Bebês Roubados da Argentina

500 - Os Bebês Roubados da Argentina
Entre 1976 e 1983, a Argentina viveu sombrios anos de ditadura militar. Neste período, famílias inteiras foram despedaçadas pela repressão clandestina empreendida por um estado terrorista que ceifou a vida de cerca de 30 mil argentinos. Dentre as práticas mais aterradoras deste regime estava o sequestro sistemático de bebês e crianças, filhos de presos e desaparecidos políticos, que eram apropriados por seus algozes com espólio de guerra. A partir da iniciativa das Avós da Praça de Maio criou-se o "Banco dos 500", com amostras de seu próprio sangue, o que possibilitou, até agora, a descoberta de 114 das 500 crianças sequestradas. "500 – Os Bebês Roubados pela Ditadura Argentina" narra esta incansável luta das "Avós da Praça de Maio" que tem início na Argentina em 1976 e se liga à história do Grupo Clamor, sediado no Brasil. Esta luta das Avós perdura até os dias de hoje.

28/10/2016

SOMOS TODOS SACYS

SOMOS TODOS SACYS

A Confraria Produções​ apresenta o documentário que mostra a vida, paixão e morte do mito na tradição oral e suas re-significações nos dias atuais. Sendo este mito a alegoria de nossa cultura antropofágica, a relevância para o debate em torno do Sacy se faz pela motivação de pensar e redescobrir o Brasil. 
Você já viu um Sacy? Acredita em Sacy? Como é o Sacy?
Por dois anos, os diretores desse documentário percorreram o interior de São Paulo formulando essas perguntas aos paulistas. Desse passeio encantado originou-se um filme lúdico e poético, tipicamente brasileiro.

Nota da CNBB contra a PEC 241

Nota da CNBB contra a PEC 241

"A CNBB continuará acompanhando esse processo, colocando-se à disposição para a busca de uma solução que garanta o direito de todos e não onere os mais pobres", diz o texto

A Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou nesta quinta-feira, dia 27 de outubro, durante entrevista coletiva à imprensa, a Nota da CNBB sobre a Proposta de Emenda Constitucional 241 (PEC 241), que estabelece um teto para os gastos públicos para os próximos vinte anos. O texto foi aprovado pelo Conselho Permanente da entidade, reunido, em Brasília, entre os dias 25 e 27 deste mês.
Leia o texto na íntegra:
Brasília-DF, 27 de outubro de 2016
P –  Nº. 0698/16

NOTA DA CNBB SOBRE A PEC 241

"Não fazer os pobres participar dos próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida."
 (São João Crisóstomo, século IV)

O Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, reunido em Brasília-DF, dos dias 25 a 27 de outubro de 2016, manifesta sua posição a respeito da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016, de autoria do Poder Executivo que, após ter sido aprovada na Câmara Federal, segue para tramitação no Senado Federal.

Apresentada como fórmula para alcançar o equilíbrio dos gastos públicos, a PEC 241 limita, a partir de 2017, as despesas primárias do Estado – educação, saúde, infraestrutura, segurança, funcionalismo e outros – criando um teto para essas mesmas despesas, a ser aplicado nos próximos vinte anos. Significa, na prática, que nenhum aumento real de investimento nas áreas primárias poderá ser feito durante duas décadas. No entanto, ela não menciona nenhum teto para despesas financeiras, como, por exemplo, o pagamento dos juros da dívida pública. Por que esse tratamento diferenciado?

A PEC 241 é injusta e seletiva. Ela elege, para pagar a conta do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres, ou seja, aqueles que mais precisam do Estado para que seus direitos constitucionais sejam garantidos. Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não propõe auditar a dívida pública.

A PEC 241 supervaloriza o mercado em detrimento do Estado. "O dinheiro deve servir e não governar! " (Evangelii Gaudium, 58). Diante do risco de uma idolatria do mercado, a Doutrina Social da Igreja ressalta o limite e a incapacidade do mesmo em satisfazer as necessidades humanas que, por sua natureza, não são e não podem ser simples mercadorias (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 349).

A PEC 241 afronta a Constituição Cidadã de 1988. Ao tratar dos artigos 198 e 212, que garantem um limite mínimo de investimento nas áreas de saúde e educação, ela desconsidera a ordem constitucional. A partir de 2018, o montante assegurado para estas áreas terá um novo critério de correção que será a inflação e não mais a receita corrente líquida, como prescreve a Constituição Federal.

É possível reverter o caminho de aprovação dessa PEC, que precisa ser debatida de forma ampla e democrática. A mobilização popular e a sociedade civil organizada são fundamentais para superação da crise econômica e política. Pesa, neste momento, sobre o Senado Federal, a responsabilidade de dialogar amplamente com a sociedade a respeito das consequências da PEC 241.

A CNBB continuará acompanhando esse processo, colocando-se à disposição para a busca de uma solução que garanta o direito de todos e não onere os mais pobres.

Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, continue intercedendo pelo povo brasileiro. Deus nos abençoe!

Dom Sergio da Rocha – Arcebispo de Brasília
Presidente da CNBB

Dom Murilo S. R. Krieger, SCJ – Arcebispo de São Salvador da Bahia
Vice-Presidente da CNBB

Dom Leonardo Ulrich Steiner, OFM – Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário-Geral da CNBB


Nota da CNBB sobre a PEC 241

Transição à ditadura

Transição à ditadura

Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo – a palavra "ditadura" pode parecer excessiva, mas é exatamente disto que se trata.

lfmiguel-passagem-a-ditaduraPor Luis Felipe Miguel.

Entrei na universidade no mesmo mês em que um civil voltou à presidência da República no Brasil. Depois de mais de vinte anos de regime autoritário, estávamos frente à possibilidade de reconstruir um governo baseado na soberania popular. Esta conjuntura impactou o ambiente em que eu estava entrando; em toda a minha formação acadêmica, da graduação ao doutorado, um tema central de debate, se não o tema central do debate, foi a transição à democracia. Pois na quadra atual da vida brasileira, uma nova agenda de pesquisa se abre: a transição à ditadura.

A palavra "ditadura" pode parecer excessiva, mas é exatamente disto que se trata. Sem discutir extensamente o conceito, é possível afirmar que "ditadura" remete a dois sentidos principais, aliás interligados. Por um lado, como oposto de democracia, indica um governo que não tem autorização popular. Por outro, em contraste com o império da lei, sinaliza um regime em que o poder não é limitado por direitos dos cidadãos e em que a igualdade jurídica é abertamente desrespeitada. O Brasil após o golpe de 2016 caminha nas duas direções.

A destituição da presidente Dilma Rousseff, sem respaldo na Constituição, representou um golpe de novo tipo, desferido no parlamento, com apoio fundamental do aparato repressivo do Estado, da mídia empresarial e do grande capital em geral. Foi um golpe sem tanques, sem tropas nas ruas, sem líderes fardados. Mas foi um golpe, ainda assim, uma vez que representou o processo pelo qual setores do aparelho de Estado trocaram os governantes por decisão unilateral, modificando as regras do jogo em benefício próprio.

Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo. Alguns talvez prefiram o termo "semidemocracia", mas eu não acredito nesse eufemismo. O regime eleitoral já é uma "semidemocracia", uma vez que a soberania popular é muito tênue, muito limitada. Estaríamos entrando, então, numa "semi-semidemocracia". "Ditadura" é mais direto, corresponde ao núcleo essencial do sentido da palavra e tem a grande vantagem de sinalizar claramente a direção que tomamos: concentração do poder, diminuição da sensibilidade às demandas populares, retração de direitos e ampliação da coerção estatal.

Essa ditadura não será o regime de um ditador pessoal, até porque nenhum dos possíveis candidatos ao posto tem força suficiente para alcançá-lo. Não será uma ditadura das forças armadas, ainda que sua participação na repressão tenda a crescer. Provavelmente, muitos dos rituais do Estado de direito e da democracia eleitoral serão mantidos, mas cada vez mais esvaziados de sentido.

Ou seja: a transição que vivemos é de uma democracia insuficiente para uma ditadura velada. As debilidades do arranjo democrático anterior, que era demasiado vulnerável à influência desproporcional de grupos privilegiados, não serão desafiadas, muito pelo contrário. Ao mesmo tempo, alguns procedimentos até agora vigentes estão sendo cortados, seletivamente, de maneira que mesmo o arranjo formal da democracia liberal vai sendo desfigurado.

A Constituição não foi revogada, mas opera de maneira deturpada e irregular. O caso mais emblemático certamente é a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no dia 22 de setembro, concedendo ao juiz Sérgio Moro poderes de exceção. O tribunal alegou que as características excepcionais das questões nas quais está envolvido Moro tornam facultativo, para ele, o respeito às regras processuais vigentes. É a própria definição de exceção. Na prática, as garantias constitucionais ficaram suspensas para qualquer um que seja alvo do juiz curitibano. Em suma, lei e Constituição vigoram – ou não – dependendo das circunstâncias e da interpretação que alguns, dotados desse poder, delas fazem.

Duas semanas depois, no dia 5 de outubro, o Supremo Tribunal Federal decidiu permitir o encarceramento de réus sem que os recursos tenham sido esgotados, anulando o princípio constitucional da presunção de inocência. Vendida como medida para impedir a impunidade dos poderosos, amplia o poder discricionário de um Judiciário que é notoriamente enviesado em suas decisões. Apenas como ilustração, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro afirmou em nota que mais de 40% de seus recursos ao STJ têm efeito positivo. É, portanto, um contingente muito expressivo de pessoas que começariam a cumprir penas depois consideradas injustas.

No mesmo dia, o STF ratificou e normatizou decisão anterior, permitindo que a polícia invada domicílios sem mandado judicial. Isso se vincula ao aumento generalizado da truculência policial, contra manifestantes, contra estudantes, contra trabalhadores. É algo que vem desde o final do governo Dilma, estimulado pelo clima político de avanço da reação – e também, é necessário ser dito, pela legislação que o próprio governo Dilma aprovou.

Cumpre assinalar também a volta da tortura a prisioneiros, com motivação política. O encarceramento por tempo indefinido, com o objetivo expresso de "quebrar a resistência" de suspeitos (pois nem réus são) e levá-los à delação, tornou-se rotina no Brasil e é uma forma de abuso de poder, de constrangimento ilegal e, enfim, de tortura. (E antes de que alguém lembre que a tortura a presos comuns nunca se extinguiu no Brasil, cabe ponderar que a extensão da prática em nada melhora a situação dos presos comuns; ao contrário, pode piorá-la.)

Fica claro que o poder judiciário não está cumprindo o papel de garantidor das regras, o que já fora demonstrado durante o processo de impeachment ilegal. Como sabemos, parte do judiciário foi partícipe ativa do golpe, parte foi cúmplice silenciosa, mas não se encontra ninguém, nas cortes superiores, que tenha se levantado em defesa da democracia brasileira.

Continuamos a ter eleições. No entanto, as condições da disputa, que sempre foram desiguais, dado o controle dos recursos materiais e dos meios de comunicação de massa, estão ainda mais assimétricas, com a campanha incessante de criminalização do Partido dos Trabalhadores e de todo o lado esquerdo do espectro político. Para as eleições presidenciais de 2018, a grande questão que se coloca à esquerda é se o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva terá condições legais de concorrer. Em relação a seus potenciais concorrentes à direita, todos atingidos por denúncias de corrupção mais graves e com evidências mais sólidas do que aquelas apontadas contra Lula, tal preocupação não existe. E a delegação de poder por via eleitoral foi desmoralizada com a destituição da presidente legítima. Caminhamos para uma situação de disputa eleitoral quase ritualística, com cerceamento das opções colocadas à disposição do eleitorado e tutela dos eleitos.

Essa criminalização do PT e da esquerda em geral é alimentada pelos meios de comunicação empresariais e pelos poderes de Estado, com destaque agora para a campanha do governo Temer sobre "tirar o país do vermelho". A agressividade crescente dos militantes da direita, produzida de forma deliberada, tenta emparedar as posições à esquerda, progressistas e democráticas, ao mesmo tempo em que a cassação de registros partidários torna-se uma possibilidade mais palpável.

O cerco ao ex-presidente Lula, em que uma parte importante do aparelho repressivo do Estado vem sendo mobilizada com o intuito de conseguir provas de uma culpa determinada de antemão, é outro sintoma claro de que deslizamos para um estado de exceção. Quando vigora o império da lei, a investigação sucede à descoberta de evidências que sustentem suspeitas. Se, ao contrário, decide-se promover uma devassa na vida de alguém na esperança de encontrar algo incriminatório, estando depois os juízes "condenados a condenar", como disse o próprio Lula, não temos mais a igualdade legal. O sistema judiciário funciona na sua aparência, mas perdemos a possibilidade de evocar os valores que deveriam presidi-lo a fim de garantir a vigência das liberdades.

Em suma, a ditadura se expressa no alinhamento dos três poderes em torno de um projeto claro de retração de direitos individuais e sociais, a ser implantado sem que se busque sequer a anuência formal da maioria da população, por meio das eleições.

O sintoma mais claro da ditadura que se implanta é a paulatina redução da possibilidade do dissenso. Ela vem aos poucos, mas continuamente. Dentro do Estado, do Itamaraty ao IPEA, não há praticamente espaço em que a caça às bruxas não seja pelo menos insinuada. Vista como foco potencial de divergências, a pesquisa universitária está sendo estrangulada. Decisões judiciais coibindo críticas – em primeiro lugar ao próprio Judiciário e seus agentes, mas não só – tornaram-se cada vez mais costumeiras. Juízes e procuradores, embalados pela onda da campanha mistificadora do Escola Sem Partido, intimidam professores e estudantes que queiram debater em escolas e universidades. O MEC se junta à campanha, exigindo, como fez na semana passada, que estudantes mobilizados sejam denunciados pelas administrações universitárias. É todo um processo de normalização do silenciamento da divergência que está em curso.

O avanço da censura está ligado à imposição da narrativa única pelos oligopólios da comunicação, parceiros de primeira hora da ditadura em implantação. Isso se dá em várias frentes. Há o estrangulamento econômico dos meios de comunicação independentes, uma política buscada deliberadamente pelo governo Temer – que, ao mesmo tempo, ampliou de forma significativa a remuneração oferecida aos grupos da mídia empresarial.

Enquanto isso, medidas que impactam seriamente a vida nacional, mudando a lei e a Constituição, são levadas adiante sem qualquer tipo de debate – seja com a sociedade, seja dentro do próprio Congresso Nacional. É um governo que impõe sua vontade, escorado na cumplicidade dos meios de comunicação e no apoio fisiológico da maior parte dos parlamentares. Com isso, não há sequer uma pantomima para fingir que ocorre discussão no Congresso; os projetos tramitam com velocidade recorde, atropelando todos os prazos. Por vezes, praticamente só a oposição discursa – os governistas querem simplesmente cumprir o ritual, o mais rápido que possam. Não há espaço para negociação, nem necessidade de justificação pública aprofundada.

São muitos os exemplos, mas cito apenas três. A reforma do ensino médio, apresentada sem discussão com pedagogos, professores ou estudantes, por meio de medida provisória. Sem discutir os méritos da reforma ou mesmo o fato de que ela foi justificada com a apresentação de dados falsificados do ENEM, trata-se de uma medida com profundas e complexas implicações, que não poderia prescindir de amplo debate.

O segundo exemplo é a entrega do pré-sal a empresas estrangeiras, rompendo o consenso sobre a exploração do petróleo brasileiro, construído ao longo de décadas. Por fim, a proposta de emenda constitucional nº 241, que congela o investimento social por vinte anos. Num caso como no outro, são decisões de enorme gravidade, na contramão da vontade popular sistematicamente expressa nas eleições – jamais, na história brasileira, o entreguismo ou a ideia de redução do investimento social foram capazes de ganhar eleições competitivas. Quando chegaram ao governo, foi em períodos de exceção ou por meio de manipulação e ocultamento na campanha eleitoral.

Seja no caso da entrega do pré-sal, seja no caso da PEC de estrangulamento do investimento público, o debate foi próximo do zero. Com os diferentes grupos da sociedade civil, não se travou nenhum tipo de discussão. Com a opinião pública, o debate foi trocado por uma ofensiva de desinformação, que culminou na equívoca campanha publicitária governamental já citada, a do "tirar o país do vermelho". No Congresso, a base governista sequer tentou fingir que não estava apenas cumprindo o ritual da aprovação parlamentar. Não houve qualquer engajamento em discussões com a oposição.

O fim do monopólio sobre a exploração do pré-sal e a PEC 241 indicam, não por acaso, o programa da ditadura em implantação. A conciliação de classes que os governos do PT tentavam implementar foi rompida unilateralmente pela burguesia. Afinal, são necessários dois para conciliar – adaptando o dito popular, quando um não quer, dois não conciliam. Trata-se, então, de reverter quaisquer vantagens que as classes trabalhadoras e outros grupos subalternos tenham obtido.

Um elemento importante é o caráter misógino do retrocesso. O golpe retirou da presidência uma mulher, e o fato de que era uma mulher não foi irrelevante. Nós vimos as faixas ofensivas à presidente Dilma Rousseff nas manifestações pelo impeachment. Nós vimos os adesivos pornográficos nos automóveis. Nós vimos as reportagens na imprensa que serviu ao golpe, requentando estereótipos sexistas contra a presidente da República. Nós testemunhamos os integrantes da elite política com suas falas desdenhosas, em que o preconceito de gênero ocupava um lugar que não era desprezível.

Não se trata apenas do processo de construção da derrubada da presidente eleita. O governo atual está comprometido com o retrocesso na condição feminina, com o reforço de sua posição subordinada e do fechamento da esfera pública a elas. Não se trata apenas do retrocesso simbolizado no ministério formado exclusivamente por homens brancos, embora ele seja significativo. Como também é significativo o retorno do chamado "primeiro-damismo", em que o papel concedido à mulher na política é o da bem-comportada auxiliar de seu marido, sorrindo nos jantares e patrocinando programas assistenciais. Além disso, há o recrudescimento do discurso familista, que é aquele de exaltação da família tradicional, marcada exatamente pela submissão da mulher. Esse discurso não ressurge por acaso ou apenas por algum tipo de reacionarismo atávico dos novos donos do poder, mas vinculado à política de retração do investimento social e de destruição do nosso incipiente sistema de bem-estar social. Com isso, a responsabilidade pelo cuidado com os mais vulneráveis recai integralmente sobre as famílias, isto é, sobre as mulheres, como o celebrado discurso de estreia de Marcela Temer indicou com clareza exemplar.

A implantação desse programa exige o silenciamento das vozes contrárias a ele. Trata-se de um projeto extraordinariamente lesivo para a grande maioria do povo brasileiro. Graças à baixíssima educação política da maior parte da população e à campanha incessante da mídia, para muita gente a ficha não caiu. Mas os efeitos da redução dos salários, do aumento do desemprego, do subfinanciamento do Estado e do desmonte dos serviços públicos logo se farão sentir de forma plena. Para conter a inevitável reação popular, será necessária uma escalada repressiva e restrições cada vez maiores aos direitos.

Essa é a agenda de pesquisa que se abre no momento. Uma dimensão é a retração dos direitos e o desfiguramento das instituições democráticas. Outra é resistência popular que certamente se construirá. Torço para que esta segunda dimensão nos dê muito material para pesquisar, o mais rapidamente possível.

(Este artigo é baseado na intervenção que fiz na mesa-redonda "Conjuntura política", na última terça-feira, durante o 40º Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais – Anpocs.).

dossiê especial de intervenção "Não à PEC 241", do Blog da Boitemporeúne artigos, entrevistas, análises e vídeos que destrincham de perspectivas diversas o contexto, o processo, a agenda e os efeitos da PEC 241. Lá você encontrará reflexões de Laura Carvalho, Ruy Braga, Flávia Biroli, Guilherme Boulos, Luis Felipe Miguel, Vladimir Safatle, Silvio Luiz de Almeida, João Sicsú, Adalberto Moreira Cardoso, Rosane Borges, Mauro Iasi, Giovanni Alves, Jorge Luiz Souto Maior, Maurílio Lima Botelho, Antonio Martins, Renato Janine Ribeiro, Jessé Souza, entre outros, além de uma agenda das manifestações de rua contra a Proposta de Emenda à Constituição 241.

***

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.


27/10/2016

A estudante Ana Júlia Ribeiro, 16 anos, discursa na Assembleia Legislativa do Paraná

Ana Julia Ribeiro, da escola Senador Manuel Alencar Guimarães, discursa no plenário da Alep



A sorte do Brasil é que, para cada Janaína, temos estudantes como a paranaense Ana Júlia. Por Kiko Nogueira

Postado em 26 Oct 2016
Ana JúliaAna Júlia

Quando você achar que está na hora de se mudar para o Uruguai, quando você vir que o Brasil pariu Janaína Paschoal, quando você ouvir Alexia Deschamps — lembre-se da estudante Ana Júlia Ribeiro.

Aos 16 anos, a menina deu uma aula de democracia aos deputados da Assembleia Legislativa do Paraná na sessão plenária de quarta, dia 26.

Foi convidada a contar por que as escolas estão sendo ocupadas. Diante daqueles senhores, emocionada mas sob controle, com calma e contundência, inteligência e articulação, Ana explicou suas razões.

"Sabemos pelo que estamos lutando. A nossa única bandeira é a educação", começou.

"Somos um movimento dos estudantes pelos estudantes, que se preocupa com as gerações futuras, com a sociedade, com o futuro do Brasil. É por isso que nós ocupamos as nossas escolas".

Para ela, "é um insulto sermos chamados de doutrinados. É um insulto aos estudantes e aos professores".

A Escola sem Partido, diz AJ, "é uma escola sem senso crítico, é uma escola racista, homofobia. É falar para os jovens que querem formar um exército de não pensantes, um exército que ouve e baixa a cabeça. Não somos isso. Escola Sem Partido nos insulta, nos humilha, nos fala que não temos capacidade de pensar por nós mesmos".

Acusou os parlamentares de terem "sangue nas mãos" pela morte do garoto Lucas Eduardo Araújo Mora. Imediatamente o presidente da Casa, Ademar Traiano, vestiu a carapuça e ensaiou uma censura. Ana prosseguiu.

Enquanto houver Ana Júlia, há esperança.

Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=8gGpuwZlNcg.

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Sobre o Autor
Diretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.




ENTREVISTA EXCLUSIVA COM ANA JÚLIA

Estudante secundarista que deu um show na Assembleia Legislativa do Paraná fala com exclusividade aos Jornalistas Livres sobre as ocupações. Os pais de Ana Júlia estão acompanhando as ocupações, declaram apoio e convidam à todos os pais a conhecerem a luta e a organização dessa garotada de luta!

Vídeo - Paulo Jesus, especial para os Jornalistas Livres: 






26/out/2016, 21h45min

A estudante Ana Júlia Ribeiro, 16 anos, cala a Assembleia Legislativa do Paraná

Do Jornal GGN

Uma menina de 16 anos, Ana Julia Ribeiro, estudante secundarista, dá uma aula de cidadania na Assembleia Legislativa do Paraná (https://www.youtube.com/watch?v=oY7DMbZ8B9Y). A jovem consegue ser tudo: informada, cidadã, contundente, doce, emocionada, feroz. Ela representa a juventude brasileira que hoje se posiciona, e ocupa escolas por todo o país. Ela ensina como é que deve ser o exercício de se posicionar, se colocar frente às realidades do país, enfrentar as adversidades e a tristeza de perder um amigo para uma sociedade que não sabe o que é que está acontecendo hoje. A estudante coloca a juventude no seu lugar: o de construtores de uma nova Nação, uma Nação que se importa com seus cidadãos. Ela é tudo o que os adultos precisariam ser: íntegra! Use dez minutos de sua vida e entenda o que é ser um cidadão, um ser que luta por um país justo, por uma educação de primeira. Ela aborda a PEC 241, a Lei da Mordaça, a saúde, a educação, a assistência social, o futuro, e critica a criação de uma sociedade sem cérebro. Palmas para os estudantes em luta! Palmas para Ana Julia!

http://www.sul21.com.br/jornal/a-estudante-ana-julia-ribeiro-16-anos-cala-a-assembleia-legislativa-do-parana/


26/10/2016

FASCISMO SOCIAL, FASCISMO POLÍTICO



FASCISMO SOCIAL, FASCISMO POLÍTICO

"A segunda década do milênio está dominada, talvez como nunca, pelo monopólio de uma concessão de democracia de tão baixa intensidade que facilmente se confunde com a antidemocracia. Com cada vez mais infeliz convicção, vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas. Até quando o fascismo se mantém como regime social e não passa a fascismo político, essa é uma questão em aberto."

– Boaventura de Sousa Santos, "A difícil democracia: reinventar as esquerdas" (Boitempo, 2016, p.13) — http://bit.ly/2eo0pf0
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Irá chegar um novo dia

Irá chegar um novo dia

Irá chegar um novo dia
Um novo céu, uma nova terra, um novo mar
E nesse dia os oprimidos
A uma só voz, a liberdade, irão cantar

Na nova terra o negro não vai ter corrente
E o nosso índio vai ser visto como gente
Na nova terra o negro, o índio e o mulato
O branco e todos vão comer no mesmo prato

Irá chegar um novo dia
Um novo céu, uma nova terra, um novo mar
E nesse dia os oprimidos
A uma só voz, a liberdade, irão cantar

Na nova terra o fraco, o pobre e o injustiçado
Serão juízes deste mundo de pecado
Na nova terra o forte, o grande e o prepotente
Irão chorar até ranger os dentes

Irá chegar um novo dia
Um novo céu, uma nova terra, um novo mar
E nesse dia os oprimidos
A uma só voz, a liberdade, irão cantar

Na nova terra a mulher terá direitos
Não sofrerá humilhações, nem preconceitos
O seu trabalho todos vão valorizar
Das decisões ela irá participar

Irá chegar um novo dia
Um novo céu, uma nova terra, um novo mar
E nesse dia os oprimidos
A uma só voz, a liberdade, irão cantar

Na nova terra os povos todos irmanados
Com sua cultura e direitos respeitados
Farão da vida um bonito amanhecer
Com igualdade no direito de viver

Irá chegar um novo dia
Um novo céu, uma nova terra, um novo mar
E nesse dia os oprimidos
A uma só voz, a liberdade, irão cantar

Homenagem a dom Paulo torna-se ato de denúncia do Estado de exceção

Homenagem a dom Paulo torna-se ato de denúncia do Estado de exceção, da perseguição a Lula e da PEC 241 - Viomundo - O que você não vê na mídia

Denúncia do estado de exceção.

hattp://www.viomundo.com.br/voce-escreve/homenagem-aos-95-anos-de-dom-paulo-torna-se-ato-de-denuncia-do-estado-de-excecao-no-brasil-da-perseguicao-a-lula-e-da-pec-241.html

DCM Entrevista: Luiz Carlos Bresser Pereira

https://www.youtube.com/shared?ci=ujQtSJk89A4

PEC 241 não se trata de ajuste fiscal, mas sim de uma redução do tamanho do estado, diz Luiz Carlos Bresser Pereira

Para o economista e ex-ministro da fazenda Luiz Carlos Bresser Pereira, a PEC 241 não se trata de ajuste fiscal, mas sim de uma redução do tamanho do estado. "É desmantelar o estado de bem-estar social", afetando mais ainda a saúde pública e a educação fundamental.

Bresser Pereira critica o sistema tributário brasileiro, que é regressivo e beneficia os mais ricos e aponta uma saída para a crise financeira do país: linha especial de crédito para as empresas e juros menores.

TVT #PelosDireitosDoTrabalho

20/10/2016

Nota da Comissão Episcopal Pastoral Para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz

Nota da Comissão Episcopal Pastoral Para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz
SCJP - Nº. 0683 /16

"Nenhuma família sem casa, 
Nenhum camponês sem terra, 
Nenhum trabalhador sem direitos,
Nenhuma pessoa sem dignidade". 
Papa Francisco.

Nós, Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, e bispos referenciais das Pastorais Sociais, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, reunidos em Brasília, nos dias 18 e 19 de outubro de 2016, manifestamos nossa preocupação com o cenário de retrocessos dos direitos sociais em curso no Brasil.

Entendemos que as propostas de reforma trabalhista e terceirização, reforma do Ensino Médio, reforma da Previdência Social e, sobretudo, a Proposta de Emenda Constitucional, PEC 241/2016, que estabelece teto nos recursos públicos para as políticas sociais, por 20 anos, colocam em risco os direitos sociais do povo brasileiro, sobretudo dos empobrecidos.

Em sintonia com a Doutrina Social da Igreja Católica, não se pode equilibrar as contas cortando os investimentos nos serviços públicos que atendem aos mais pobres de nossa nação. Não é justo que os pobres paguem essa conta, enquanto outros setores continuam lucrando com a crise.

Afirmamos nossa solidariedade com os Movimentos Sociais, principalmente de trabalhadores e trabalhadoras, e com a juventude, que manifestam seu descontentamento com as propostas do governo, bem como todas as organizações que lutam na defesa dos direitos da população.

Encorajamos as Pastorais Sociais a participarem, com os demais movimentos e organizações populares, na defesa das conquistas sociais garantidas na Constituição Federal de 1988, na qual a CNBB tanto se empenhou no final da década de 1980. Não desanimemos diante das dificuldades. Somos povo da esperança!

Com compromisso profético, denunciamos, como fez o Profeta Amós: "Eles vendem o justo por dinheiro, o indigente, por um par de sandálias; esmagam a cabeça dos fracos no pó da terra e tornam a vida dos oprimidos impossível" (Am 2,6-7).

O Espírito do Senhor nos anima no serviço da Caridade, da Justiça e da Paz. Com Maria cantamos a grandeza de Deus que "derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes; enche de bens os famintos e manda embora os ricos de mãos vazias" (Lc 1, 51s).

Brasília, 19 de Outubro de 2016.


Dom Guilherme Werlang
Bispo de Ipameri - GO
Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para
o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz


19/10/2016

Os processos participativos fazem parte da democracia

Os processos participativos fazem parte da democracia

Ladislau Dowbor - 30 de setembro de 2014

O texto na nossa constituição é claro, e se trata nada menos do que do fundamento da democracia: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Está logo no artigo 1º, e garante por tanto a participação cidadã através de representantes ou diretamente. Ver na aplicação deste artigo, por um presidente eleito, e que jurou defender a Constituição, um atentado à democracia não pode ser ignorância, constitui vulgar defesa de interesses elitistas por quem detesta ver cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com representantes. Mais grave, continua sendo aplicada a lei inconstitucional de 1997 que autoriza as corporações a financiar as campanhas, com apropriação direta dos mandatos políticos. As elites já participam diretamente, trata-se de democratizar o processo.
A democracia participativa em lugar algum substituiu a democracia representativa. São duas dimensões de exercício da gestão pública. A verdade é que todos os partidos, de todos os horizontes, sempre convocam a população a participar, apoiar, criticar, fiscalizar, exercer os seus direitos cidadãos. Mas quando um governo eleito gera espaços institucionais para que a população possa participar efetivamente, de maneira organizada, os agrupamentos da direita invertem o discurso e criminalizam os movimentos.
É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano passado. As multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e qualidade em mobilidade urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às ruas justamente porque as instâncias representativas não constituíam veículo suficiente de transmissão das necessidades da população para a máquina pública nos seus diversos níveis. Em outros termos, faltavam correias de transmissão entre as necessidades da população e os processos decisórios.
A presença direta dos grupos de interesses, sem o contrapeso das organizações populares, resultou, por exemplo, na construção de viadutos e outras infraestruturas para carros, desleixando o transporte coletivo de massa e paralisando a cidade. Uma Sabesp vende água, o que rende dinheiro, mas não investe em esgotos e tratamento, pois é custo, e o resultado é uma cidade rica como São Paulo que vive rodeada de esgotos a céu aberto, gerando contaminação a cada enchente. Quando não chove, a cidade amarga a falta de água, quando por falta de investimentos um terço da água distribuída se perde em vazamentos. Inaugurar viaduto permite belas imagens, saneamento básico e tratamento de esgotos muito menos. Esta dinâmica pode ser encontrada em cada cidade do país onde são algumas empreiteiras e especuladores imobiliários que mandam na política tradicional, priorizando o lucro corporativo em vez de buscar o bem estar da população.
Participação democrática funciona. Nada como criar espaços para que seja ouvida a população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor do que os residentes de um bairro para saber quais ruas se enchem de lama quando chove. As horas que as pessoas passam no ponto de ônibus e no trânsito diariamente as levam a engolir a revolta, ou sair indignadas às ruas, mas o que as pessoas necessitam é justamente ter canais de expressão das suas prioridades, em vez de ver nos jornais e na televisão a inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui de aproximar o uso dos recursos públicos das necessidades reais da população. Ou seja, de gerar os canais organizados de expressão destas necessidades. Dito de outra forma, é a visão de um processo decisório que funcione com rédeas mais curtas, mais próximo da população, e com muito mais transparência.
Participação não é modismo de esquerda nem saudade da Grécia antiga. Trata-se de resgatar a funcionalidade política e a racionalidade da gestão pública. Corresponde às mudanças de uma sociedade moderna e complexa. Quatro eixos de transformação estrutural definem o marco desta mudança institucional: a urbanização, a expansão das políticas sociais, a economia do conhecimento e a conectividade planetária.
Uma sociedade urbanizada
Em meados do século passado tínhamos dois terços de população rural, e as decisões se davam nas capitais, o resto era população dispersa sem peso político significativo. Hoje temos 85% de população urbana. E se algumas atividades se globalizaram, outras como a gestão do nosso cotidiano, o deslocamento para o trabalho, a segurança do nosso bairro, o médico da família, a escola das crianças, a riqueza cultural do nosso cotidiano e outras atividades centrais para a qualidade de vida passaram a depender essencialmente da organização local. Qualquer município hoje tem gente formada, capacidade de gestão que aliada com o conhecimento profundo das especificidades locais, permite racionalizar a gestão tanto urbana como do entorno rural. E quando não tem, poderá se organizar em consórcios com cidades maiores da região, buscar o apoio técnico de universidades regionais e assim por diante.
Ou seja, o grosso da gestão do cotidiano político pode ser radicalmente descentralizado. Inclusive porque as novas tecnologias permitem descentralizar o processo decisório sem perder a capacidade de seguimento político mais amplo no plano estadual e federal. E obviamente a política de proximidade facilita radicalmente a participação. Urbanização, descentralização e participação fazem parte de um mesmo processo de racionalização da política. Inclusive, a própria produtividade e efetividade dos programas federais depende vitalmente da capacidade organizada de recepção pelas comunidades locais. Frequentemente, em termos de gestão do desenvolvimento, mais importante do que a quantidade de recursos é a qualidade da gestão. E a participação é um poderoso fator de racionalização.
Centralidade das políticas sociais
Quando as pessoas falam em crescimento da economia, ainda pensam em comércio, automóvel e semelhantes. A grande realidade é que o essencial dos processos produtivos se deslocou para as chamadas políticas sociais. O maior setor econômico dos Estados Unidos, para dar um exemplo, é a saúde, representando 18,1% do PIB. A totalidade dos setores industriais nos EUA emprega hoje menos de 10% da população ativa. Se somarmos saúde, educação, cultura, esporte, lazer, segurança e semelhantes, todos diretamente ligados ao bem estar da população, temos aqui o que é o principal vetor de desenvolvimento. Investir na população, no seu bem estar, na sua cultura e educação, é o que mais rende. Não é gasto, é investimento nas pessoas. Estamos invertendo a bobagem de primeiro fazer crescer o bolo para depois distribuir. São pessoas bem formadas e vivendo em condições decentes que farão crescer o bolo, como nos ensinou a Coréia do Sul, o Japão e tantos outros.
A característica destes setores dinâmicos da sociedade moderna, é que são capilares, têm de chegar de maneira diferenciada a cada cidadão, a cada criança, a cada casa, a cada bairro. E de maneira diferenciada porque no agreste terá papel central a água, na metrópole a mobilidade e a segurança e assim por diante. Aqui funciona mal a política centralizada e padronizada para todos: a flexibilidade e ajuste fino ao que as populações precisam e desejam são fundamentais, e isto exige políticas participativas. Produzir tênis pode ser feito em qualquer parte do mundo, coloca-se em contêiner e se despacha para o resto do mundo. Saúde, cultura, educação não são enlatados que se despacham. São formas densas de organização da sociedade. A chamada política de proximidade torna-se fundamental. Nestes novos setores da economia moderna, abre-se assim uma avenida particularmente rica de organização da participação da sociedade civil em torno aos seus interesses.
As organizações da sociedade civil têm as suas raízes nas comunidades onde residem, podem melhor dar expressão organizada às demandas, e sobre tudo tendem a assegurar a capilaridade das políticas públicas. Não seriam mais eficientes para produzir automóveis ou represas hidroelétricas. Mas nas áreas sociais, no controle das políticas ambientais, no conjunto das atividades diretamente ligadas à qualidade do cotidiano, são simplesmente indispensáveis.
O setor público tem tudo a ganhar com este tipo de parcerias. E fica até estranho os mesmos meios políticos e empresariais que tanto defendem as parceiras público-privadas (PPPs), ficarem tão indignados quando aparece a perspectiva de parcerias com as organizações sociais. O que o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, e a Política Nacional de Participação Social, aprovados em 2014, liberam, é o potencial das parcerias entre o governo e as OSCs, no que tem sido chamado internacionalmente de parcerias do tipo público/público, em contraposição ao público/privado.
A economia do conhecimento
O deslocamento para a economia do conhecimento está sendo tão profundo como foi, em termos de mudança estrutural, a transição da economia rural para a industrial. Como ordem de grandeza, podemos estimar que hoje o conhecimento se tornou o principal fator de produção. Um celular, naturalmente, tem mais de 90% do seu valor em conhecimento incorporado (pesquisa, design etc.), mas hoje toda atividade está se tornando densa em conhecimento, inclusive a do pequeno agricultor que recorre |à inseminação artificial, análise de solo, sementes melhoradas e assim por diante. Hoje qualquer camponês do Quênia comercializa a sua safra através de programas no seu celular. Esta expansão vertiginosa das novas tecnologias tem duplo sentido: tanto pode gerar maior dependência de gigantes corporativos, como pode gerar autonomia e empoderamento dos pequenos agricultores.
A grande diferença é que a propriedade de fábricas é muito limitada, enquanto inteligência e capacidade criativa temos todos. Ou seja, abrem-se possibilidades de apropriação local das transformações econômicas e sociais por parte de pessoas ou de regiões que estavam simplesmente excluídas. O conhecimento, como fator de produção, tem esta particularidade de não ser um bem material que se esgota. Quem repassa o seu conhecimento para alguém, continua com ele. Em outros termos, o principal fator de produção hoje é um fator cujo uso não reduz o estoque. No jargão econômico, é um bem não rival. A guerra é grande, com extensão de copyrights, patentes, royalties e outras formas de pedágio. Mas a apropriação do conhecimento pela população em geral é irreversível.
Há poucas décadas ainda, havia as pessoas formadas, ou seja capazes, e havia a massa ignara. Com isto se justificava a centralização de todos os processos organizados nas mãos de elites. Com a generalização e democratização do conhecimento – que está no seu começo apenas mas avança rapidamente – abrem-se imensas possibilidades de gestão participativa e descentralizada. O elitismo tradicional nos processos decisórios passa a fazer muito menos sentido. As pessoas podem ser pobres mas não são burras, e hoje têm consciência de que têm direito a uma saúde decente para a sua família, educação adequada para os filhos e outros direitos. Os próprios sistemas tradicionais de organização partidária elitista estão sendo questionados. São Paulo, ao eleger representantes locais nas 32 subprefeituras, e ao formá-los para a participação, está dando os primeiros passos no resgate não só da cidadania, mas de uma gestão mais democrática e eficiente.
A conectividade
A economia do conhecimento navega nas novas tecnologias de informação e comunicação. Pintadas na Bahia resgatou o cultivo das suas terras através de uma parceria com a Universidade Federal da Bahia; Piraí no Estado do Rio generalizou o acesso à banda larga melhorando desde a produtividade nas repartições públicas e nas empresas até o interesse maior dos alunos quando o estudo lhes permite ter acesso online ao conhecimento acumulado no planeta; pequenos municípios e pequenos produtores se conectam online para se articular com outros municípios ou outros produtores. Gera-se assim o conceito de gestão horizontal em rede, diferente das tradicionais pirâmides de autoridade onde a base apenas escuta e cumpre.
A expansão fulgurante da telefonia por celular e da conexão internet – no Brasil já são mais de 50% da população que acessam – cria uma nova dinâmica que aparece na mídia quando jovens se organizam para um protesto, mas que tem dimensões estruturantes da sociedade muito mais profundas. Um município pode ser pequeno, mas se está conectado, torna-se perfeitamente viável. E a gestão de projetos menores e diversificados fica muito mais eficiente tanto em termos de flexibilidade administrativa como de controle em esferas superiores. Aliás, a expansão da gestão participativa local não só racionaliza o próprio desenvolvimento local, como tira de dentro dos gabinetes dos ministros a pressão de prefeitos e deputados pelo varejo, e lhes permite se debruçar mais efetivamente sobre as questões nacionais. A descentralização racionaliza. Mas para que não se torne política de cacique local, precisamos de canais participativos organizados e eficientes.
Eu, de certa forma graças aos militares, conheci muitas experiências pelo mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas ou diretamente para governos. Todos os países desenvolvidos têm ampla experiência, muito bem sucedida, de sistemas descentralizados e participativos, de conselhos comunitários e outras estruturas semelhantes. Isto não só torna as políticas mais eficientes, como gera transparência. É bom que tanto as instituições públicas como as empresas privadas que executam as políticas tenham de prestar contas. Democracia, transparência, participação e prestação de contas fazem bem para todos. 
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Cepal – La hora de la Igualdad – CEPAL,  Santiago, mayo de 2010, 289 p. Documento síntese com 58 páginas em português:  http://bit.ly/bqwYAh  Documento completo em espanhol:  http://bit.ly/bA9yrl
Ladislau Dowbor – Gestão social e transformação da sociedade, 2013, http://dowbor.org/2013/05/gestao-social-e-transformacao-da-sociedade.html/