17/09/2016

Resgate do caráter popular da cultura crioula

Resgate do caráter popular da cultura crioula

Questão de Justiça e estratégia


Demétrio Xavier
Violonista e cantor porto-alegrense, especializado na
pesquisa e interpretação da música crioula uruguaia e argentina, há 25 anos. Formado em ciências sociais pela UFRGS

O discurso que reivindica o personagem social e simbólico do gaúcho, no RS, oscila majoritariamente entre o superficial e o conservador – e é sabido que, afinal, o primeiro reforça o segundo, eis que, ou não oferece questionamentos, ou os oferece débeis.

Não é assim, aliás, no Uruguai e na Argentina. Veja-se o exemplo da música que refere e cultiva esse personagem, tão emblemática desse relato. Listem-se exemplos de odes latifundistas no que naqueles países se chama “folclore”; elenquem-se algumas gloriosas peças de intenção questionadora e emancipatória no mesmo estilo no Rio Grande – e mesmo assim não se mudará a percepção de que, como movimento, há uma orientação quase oposta entre as duas tradições recentes. Quantos “folcloristas” foram exilados do Prata – alguns, mesmo, mortos – durante as ditaduras de lá, enquanto a congênere mais velha, daqui, incensava o gaúcho e o tradicionalismo...

Sem discorrer sobre as razões históricas desse divórcio, o fato é que Yupanqui ou Zitarrosa equivalerão a Chico ou a Caetano ou a Ivan Lins; Aníbal Sampayo, talvez se assemelhe a Vandré... e não aos que aqui no estado estavam, no mesmo período histórico, trabalhando formas musicais parecidas (milongas, chamarras, chamamés...), temáticas aparentemente semelhantes, códigos próximos.

Vitórias da ideologia; aquela, cuja definição não se dissocia da hegemonia. Vitórias, às vezes, surpreendentes. Que fantástica inversão obteve nossa tradição positivista, de construtores de heróis estéreis e frios como bronze de estátua!

Sim, porque não sei se será fácil encontrar personagem na História ou no imaginário dos povos mais libertário do que o gaúcho, tal como era na formação desta região. Perfil arrogante e, naquele momento e em meio desértico e conflagrado, tão individualista (certamente, material bem aproveitado por aqueles positivistas): “quando preciso de uma camisa, me engajo; quando a tenho, me mando!” “vivo debaixo do meu chapéu, dentro do meu poncho!” Desertor ou bastardo, negro, índio e mestiço, vivendo sem “lei, nem Rei, nem Deus” dos sobejos de um dos maiores desequilíbrios ecológicos (talvez ainda falte estudá-lo assim) que os últimos séculos produziram no planeta, com a reprodução descontrolada do exótico gado nos nossos campos. Homem que soube desprezar a repressão, a polícia, os poderosos e que, muito mais do que belicoso, foi hábil elo, no contrabando e no cruzar imensidões, entre nações (peninsulares e indígenas) antagônicas. E que ao ser eliminado como tipo social pela exploração pré-capitalista, deixou sem dúvida sua “genética” simbólica no proletário rural ao longo destes 200 anos. E na sua tradição, que insiste em ser afirmada comunitariamente em cada palmo do nosso território, quer pelo povo rural, quer por seu descendente urbano.

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