21/08/2016

Os três legados de Gorz

Os três legados de Gorz
As reflexões de Gorz sobre o trabalho, explica André Langer, “sempre tiveram o cuidado para restringir a ação do capitalismo sobre a ação humana”. A libertação no trabalho, segundo o pensamento do filósofo francês, só ocorre fora do trabalho. Para Langer, essa idéia é significativa “para perceber a radicalidade de seu pensamento anticapitalista, antiprodutivo e antieconomicista”.
Por: IHU Online
Na entrevista especial, concedida à IHU On-Line, por e-mail, nesta semana, Langer atribui um triplo legado a André Gorz. Ele destaca, as reflexões sobre a ecologia, o trabalho e a renda social garantida. “Estou convencido de que esses três núcleos aglutinadores não estão separados e que giram em torno de órbitas teóricas diferentes. Pelo contrário, são, vamos dizê-lo, assim, corpos de uma mesma constelação”, explica.
André Langer produziu o Cadernos IHU nº 5, intitulado Pelo Êxodo da Sociedade Salarial. A Evolução do Conceito de Trabalho em André Gorz. A pesquisa está disponível no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu). Langer é mestre em Ciências Sociais pela Unisinos e doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente, ele é pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT - com sede em Curitiba, PR. O Cepat é parceiro estratégico do IHU. Em fina sintonia com o IHU, o Cepat publica semanalmente, nasNotícias do Dia da página eletrônica do IHU, www.unisinos.br/ihu uma análise semanal da conjuntura, disponível para download no início da noite das terças-feiras no blog do IHU e nas manhãs de quarta-feira nas Notícias do Dia.
IHU On-Line - O senhor afirma que é possível dividir a obra de Gorz em duas fases diferentes. Como o senhor avalia essas duas passagens do pensamento dele? A partir de que momento Gorz percebeu as mudanças no mundo do trabalho?
André Langer - Penso que seja perfeitamente possível dividir a produção teórica de Gorz em duas fases distintas. Na verdade, essa é uma distinção introduzida pelo professor Josué Pereira da Silva , da Unicamp, e que acho pertinente. Pode-se situar a inflexão do pensamento de Gorz no final da década de 1970. O livro Adeus ao proletariado, publicado na França em 1980, recolhe embrionariamente a ruptura na sua reflexão sobre o trabalho e introduz os grandes temas que Gorz irá trabalhar, aprofundar e mesmo revisar daí em diante.
Françoise Gollain e Dominique Méda referem-se de outra maneira a esta ruptura. Para elas, é possível dividir os pensadores da questão do trabalho em duas correntes ou campos: a corrente essencialista e a corrente histórica. Esta distinção clareia a noção de trabalho que Gorz passará a desenvolver. Quando Gorz afirma que o trabalho é uma “invenção” da modernidade, assume claramente uma perspectiva histórica de trabalho. O trabalho entendido como “emprego” é algo recente na história, é contemporâneo do capitalismo industrial. Gorz desmancha essa idéia essencialista de trabalho que cultivamos durante muito tempo, mas que não era realista, ainda que cheia de conseqüências.
Emprego x Trabalho
A preocupação de Gorz nesta segunda fase inscreve-se na tentativa de delimitar teoricamente a noção de trabalho. A distinção entre emprego e trabalho ou entre trabalho e atividades sem fins econômicos, como preferia denominar, é central para que pudesse proceder a uma restrição da noção de trabalho. Gorz é um crítico feroz do economicismo. Suas reflexões sobre o trabalho sempre tiveram o cuidado para restringir a ação do capitalismo sobre a ação humana; roubar espaços e tempos do capitalismo sempre esteve em seu horizonte. E a distinção que faz favorece esta restrição da racionalidade econômica.
Gorz acreditava que já não era mais possível haver libertação no trabalho, mas apenas fora dele. Esse é outro aspecto que caracteriza a mudança da primeira para a segunda fase do seu pensamento. Essa idéia foi evoluindo a tal ponto que em seus últimos escritos já admitisse também não mais apenas uma libertação na produção, mas, sobretudo, uma libertação da produção. Isso é significativo para perceber a radicalidade de seu pensamento anticapitalista, antiprodutivo e antieconomicista.
Estou convencido de que esta “revolução” na sua idéia de trabalho é extremamente rica, ousada e provocadora. Ela implica uma mudança de enfoque e de concepção de sociedade que se quer. A distinção que ele faz entre emprego e trabalho é cheia de conseqüências políticas, sociais e pessoais. Gorz sempre a viu também na perspectiva da autonomia dos indivíduos. O trabalho assalariado não é apenas o meio pelo qual o capitalismo se desenvolve, mas, sobretudo uma forma de dominação dos trabalhadores.
Para entender essas reflexão, é preciso ter presente a análise que Gorz faz das conseqüências da revolução da micro-eletrônica, apenas em seus primórdios na década de 1970. Ele não se cansa de acentuar que essa revolução faculta que o capital possa produz mais, com menos trabalhadores e em menos tempo, elevando, assim, fenomenalmente a produtividade. E isso é novo, diz ele, em relação à outra revolução industrial. Uma das conseqüências é que o trabalho não é mais um direito ao qual todos teriam acesso, mas transmuta-se em “privilégio” para poucos. E cada trabalhador precisa “produzir-se” a si mesmo para manter-se competitivo neste mercado de trabalho.
Nestas condições, raciocina Gorz, as formas atuais de organização e concepção de trabalho se esgotaram. E não que lamente isso, pelo contrário. Em determinado momento, diz que é preciso “ousar o êxodo” do trabalho assalariado, ou seja, não se pode olhar para trás e sonhar com o tempo que não volta mais, mas é mais arrojado tentar centrar a atenção em possíveis brechas que a crise do trabalho assalariado possibilita para uma nova organização do trabalho.
Valeria perguntar se a publicação de O imaterial, em 2003, em que Gorz entra na problemática da imaterialidade – do capital e do trabalho – e se debruça também sobre uma análise crítica dos conceitos da economia política, tais como valor e capital, não seria a passagem para uma terceira fase em seu pensamento. Ainda que se perceba a introdução de novos enfoques em sua reflexão, acredito, contudo, que se situam na linha das análises críticas que vem realizando nas últimas duas décadas e meia.
IHU On-Line - Como ele nos ajuda a pensar as transformações no mundo do trabalho? Esse é o seu principal legado?
André Langer - É impressionante perceber que toda a reflexão de Gorz, por mais teórica que às vezes possa parecer, sempre se guiou no sentido de ajudar a esquerda – européia, sobretudo – a pensar as bases para um novo socialismo, não mais centrado nas condições impostas pelo capitalismo. Mas sempre foi preterido pela esquerda exatamente por suas idéias muito radicais, com exceções, evidentemente. Para ele, um dos objetivos do socialismo é impor limites à racionalidade econômica.
O triplo legado
Penso que se pode pensar num triplo legado de Gorz: suas reflexões sobre a ecologia, o trabalho e a renda social garantida. As reflexões de Gorz sobre a ecologia política foram inovadoras na França. Quando ainda não se discutia esse tema, ele o começa a fazer. Vale destacar que Gorz foi um dos primeiros a criticar a civilização do automóvel. Hoje, esses temas são corriqueiros, mas vale enfatizar sua reflexão pioneira, ainda mais vinda de alguém que se dizia de esquerda. É preciso entender o alcance dessa discussão, pois Gorz não alimentava, ao tratar deste tema, um sentimento bucólico, nostálgico, mas entendia a ecologia política como crítica do capitalismo como produtivismo. Sempre associou essa reflexão à impossibilidade de se seguir indefinidamente o modo de produção e de consumo propostos.
Um segundo legado que Gorz deixa é seguramente a crítica que faz à idéia de trabalho, assim como construída ao longo do capitalismo industrial. Sobre isso já nos referimos acima.
A defesa de uma renda social garantida é um dos vértices da sua discussão sobre o trabalho. As formas tradicionais de distribuição das riquezas, via salário, como remuneração pelo trabalho socialmente útil realizado pelos trabalhadores, caducaram. É preciso inventar novas formas de partilha das riquezas socialmente produzidas. O tema da renda social garantida, ou renda cidadã, é um dos fios condutores que perpassa toda a segunda fase de sua produção.
Ele revê sua concepção para torná-la realmente consonante com sua concepção antieconômica. Diverge, nesse sentido, dos demais pensadores que defendem, como ele, a renda cidadã. Ele concebe a renda social garantida como uma política que possa abrir caminhos para o êxodo da sociedade do trabalho e das mercadorias. Ele vê nela uma maneira não de legitimar o capitalismo, mas, ao contrário, de enfrentá-lo exatamente no plano da produção. Pensa-a na perspectiva de tornar possível o desenvolvimento ilimitado dos indivíduos e não como outra maneira de subjugá-los ainda mais. Nisso, Gorz diverge de outros defensores da renda cidadã, como Antonio Negri, Maurizio Lazzarato, Yann Moulier-Boutang e Giuseppe Cocco, no Brasil, entre outros. Para estes, a renda cidadã seria uma maneira de o capital remunerar aquelas habilidades, conhecimentos, enfim, exterioridades, de que o capital se utiliza para a produção de riquezas, sem no entanto pagar por isso. Na perspectiva de Gorz, isso seria uma ampliação da lógica do capital para espaços ainda livres da lógica economicista. Para Gorz, ao contrário, a renda cidadã deve ser entendida como uma maneira de impor limites ao capital e proporcionar o pleno desenvolvimento das pessoas.
Estou convencido de que esses três núcleos aglutinadores não estão separados e que giram em torno de órbitas teóricas diferentes. Pelo contrário, são, vamos dizê-lo, assim, corpos de uma mesma constelação.
IHU On-Line - Como você teve contato com a obra de Gorz?
André Langer - Meu contato com a obra de Gorz se deu na preparação ao mestrado, em 1999. Meu orientador, professor Inácio Neutzling, sugeriu-me estudar a definição de trabalho em Gorz. Desafio que aceitei prontamente e com empenho. Comecei a ler material disponível em português, para me familiarizar com o assunto. Confesso que no começo foi tudo muito frio, muito seco, pois suas idéias eram radicalmente contrárias às que alimentava até então. Fiquei assustado, mas aos poucos fui entendendo que trabalhar Gorz exigia uma “revolução” nas minhas idéias e em muitos princípios que tinha. Todo o movimento social e sindical tinha sempre uma outra maneira de olhar para o trabalho. Também na Pastoral Operária, onde militava, isso era verdade. Gorz caminhava na contramão. E está na contramão até hoje em muitas de suas idéias.
Mas havia um segundo limite a superar para entrar no universo de Gorz: a língua. Com exceção de Adeus ao proletariado, todo o resto da sua produção intelectual estava em francês. Digo isso até para ressaltar que hoje, felizmente, grande parte da sua obra já se encontra em português.
Um discípulo de Gorz
Dessa maneira, fui me aproximando do meu mestre e procurando acompanhar sua obra. Lembro que no mestrado, certa vez um professor, sabendo que estudaria Gorz, me disse, franzindo a testa: “Isso pode lhe causar problemas”. Porque significava estudar um autor que ainda estava vivo e no auge de sua produção teórica. Poderia mudar suas idéias, mas também porque ainda não havia uma produção crítica produzida sobre o conjunto de sua obra. Assim mesmo aceitei o desafio, sabendo que não estava sozinho nesta caminhada.
Mas a curiosidade intelectual vai acompanhada da curiosidade por saber quem foi André Gorz. Não o conheci pessoalmente. No ano passado, Gorz publicou, na França, um livrinho dedicado à sua esposa Dorine. O livro chama-se Letrre à D. Histoire d’un amour, isto é, Carta a D. História de um amor. O livro é uma elegia à mulher de sua vida, mas é também autobiográfico. (Uma curiosidade: Gorz dedica quase todos os livros a Dorine, que um dia lhe disse: “Tua vida é escrever. Então escreva”.) Livro pequeno (76 p.), de leitura agradável, revelou-me um Gorz muito apaixonado, carinhoso, terno e afetivo. Na realidade, o livro me surpreendeu, pois sempre o vi escrever sobre temas de relevância teórica, em linguagem sempre filosófica e sociológica.
Cumplicidade
Após saber da morte do casal, reli a Carta. O livrinho, que espero também seja traduzido e publicado no Brasil, revela curiosidades da relação do casal, mas também como certas idéias teóricas encontram seu embrião em acontecimentos da vida pessoal. Refiro-me à relação da ecologia política com a saúde de Dorine. Ainda que a gênese das idéias sobre a ecologia seja anterior, elas ganham um reforço com o estado de saúde de sua esposa. Em uma de suas viagens aos Estados Unidos, os dois ficam muito impressionados com a “civilização americana”, “com seu esbanjamento, as frituras, a Coca-Cola, a brutalidade e as cadências infernais de sua vida urbana”, conta. E em outro momento conta que eles mesmos se impunham limites para a questão do consumo: “Mas nós nunca elevamos o nosso nível de vida e de consumo à altura de nosso poder de compra. Havia entre nós um acordo tácito em relação a este assunto”.
Gorz também conta que os encontros com Ivan Illich em Cuenavaca, no México, tiveram um peso importante em suas vidas. Uma das questões fundamentais que Illich colocava dizia respeito à “autogestão”, que, para Gorz, confirmava a urgência da “tecno-crítica”. Em 1973, porém, Dorine começa a ter dores de cabeça insuportáveis e inexplicáveis.
O diagnóstico é cruel: ela sofria de aracnoidite, uma doença degenerativa e para a qual não havia nenhum tratamento. Ela se nega a seguir os tratamentos convencionais e a depender deles. “Tu decidiste tomar em tuas mãos teu corpo, tua doença, tua saúde; tomar o poder sobre a tua vida em vez de deixar a tecnociência medicinal” fazê-lo. Dorine decide praticar yoga como forma de se apropriar do seu corpo e controlar as dores. E Gorz conclui dizendo que “tua doença nos levou ao terreno da ecologia e da tecnocrítica”. Mais: “a ecologia tornou-se um modo de vida e uma prática diária constante para implicar a exigência de uma outra civilização”.
A doença e o amor entre os dois os leva a morarem numa casa no interior, onde passaram muitos anos, ocupando-se de si, plantando, recebendo amigos. Ele escrevendo, dando entrevistas. “Tu acabas de fazer 82 anos”, escreveu no ano passado. Ele tinha um ano a mais. “Ainda és bela, graciosa e desejável. Há 58 anos vivemos juntos e te amo como nunca”. Na última página, se pode ler: “Eu não quero assistir à tua cremação; eu não quero receber um frasco com as tuas cinzas. Ouço a voz de Kathleen Ferrier que canta ‘Die Welt ist leer, Ich will nicht leben mehr’ (O mundo está vazio, Eu não quero mais viver) e eu me acordo. Gostaríamos de não ter de sobreviver à morte do outro. Muitas vezes dissemos que se, porventura, tivermos uma segunda vida, gostaríamos de passá-la juntos”.
Alonguei-me de propósito neste tema, pois acredito que estas passagens são, por um lado, reveladoras de um Gorz cheio de paixão e de vida, e, por outro, não são conhecidas do grande público brasileiro. A trajetória intelectual de Gorz deixa transparecer um espírito inquieto, insatisfeito, livre, imprevisível, pois sempre atento às mudanças da realidade. Mesmo morando afastado do centro urbano (tido como sinônimo de acesso à informação, no senso comum), não ter nunca usado a internet, sempre esteve incrivelmente atualizado. Não se instalou em suas idéias tomando-as como escudos, mas soube revê-las, abandoná-las quando necessário. Em tudo foi um grande intelectual. E, por isso, representa uma grande perda.

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