O Ensino Social da Igreja e
os desafios do desenvolvimento humano, econômico, técnico. Como a
fé inspira a militância cristã na prática da justiça social, da
ética, da política
Introdução.
A Igreja, com seu ensino
social, tem a missão de “anunciar e atualizar o Evangelho na
complexa rede de relações sociais”, isto é, da” própria
sociedade”. Essa missão social da Igreja refere-se ao cuidado do
ser humano, pois este vive inserido na sociedade. E sua “convivência
social, com efeito, não raro determina a qualidade de vida e, por
conseguinte, as condições em que cada homem e cada mulher se
compreendam a si próprios e decidem de si mesmos e da própria
vocação”. Esta é a razão pela qual a Igreja se ocupa “com
tudo o que na sociedade de decide, se produz e se vive, numa palavra,
à qualidade moral, autenticamente humana e humanizadora da vida
social”. Por isso, “a política, a economia, o trabalho, o
direito, a cultura não constituem um âmbito meramente secular e
mundano e, portanto, marginal e alheio à mensagem e à economia da
salvação”(CDSI, 62).
Na encíclica Populorum
Progressio, Paulo VI esclarece em que consiste o verdadeiro
desenvolvimento. Este tem como finalidade proporcionar a todo ser
humano vida digna, isto é, passar de condições menos humanas de
vida para condições mais humana de vida. O documento define quais
são as condições menos humana de vida: “as carências materiais
dos que são privados do mínimo vital; carências morais dos que são
mutilados pelo egoísmo; presença de estruturas opressivas, quer
provenham do abuso da posse ou do poder: da exploração dos
trabalhadores e as injustiças das transações”. Em seguida, o
referido documento elenca as condições mais humanas de vida: “a
passagem da miséria à posse do necessário; a vitória sobre os
flagelos sociais; o alargamento dos conhecimentos; a aquisição da
cultura; a consideração crescente da dignidade dos outros; a
orientação para o espírito de pobreza; a cooperação no bem
comum; a vontade de paz; o reconhecimento , pelo homem, dos valores
supremos, e de Deus que é a origem e o termo deles, sobretudo, a fé,
dom de Deus acolhido pela boa vontade do homem, e a unidade na
caridade de Cristo que nos chama a todos a participar como filhos na
vida de Deus vivo, Pai de todos os homens” (PP 20; 21).
Em outras palavras, pode-se
afirmar que o desenvolvimento é integral na medida em que realiza
todas as dimensões do ser humano. Na dimensão econômica ele requer
a participação ativa e em condições de igualdade no processo
econômico internacional; na dimensão social busca a evolução para
sociedades instruídas e solidárias; na dimensão política
empenha-se para consolidar regimes democráticos capazes de
assegurar a liberdade e a paz; na dimensão religiosa promove a
abertura do ser humano para a transcendência (CV 21; 29).
I. Os principais desafios
do desenvolvimento humano e econômico.
Como vimos acima o
desenvolvimento econômico tem como finalidade proporcionar os bens
materiais e imateriais necessários para que todos possam viver bem e
assim viver de forma digna. Porém, o que constatamos é que os bens
da terra e os frutos do trabalho humano não são partilhados entre
todos: 20% da população mundial, concentrados
na parte ocidental do hemisfério Norte, detêm 80% da riqueza do
planeta (Frei Beto). No Brasil, apesar dos avanços nos últimos
anos, a desigualdade social ainda é acentuada. E um dado que
estarrece é o escândalo da fome que atinge, segundo o IBGE,
aproximadamente 11 milhões de pessoas.
Nosso
povo ainda é atingido por graves problemas que amargam sua vida
devido a um desenvolvimento econômico que privilegia o lucro e o
consumo em detrimento da vida das pessoas e do meio ambiente.
1. Exclusão social.
Não tem como negar que,
apesar da melhora das políticas públicas adotadas pelo governo
federal, estadual e municipal, ainda existe uma multidão de pobres e
miseráveis fruto de ‘antigas e novas pobreza’ em cujos rostos
resplandece o rosto pobre e crucificado de Jesus: moradores de rua,
migrantes, enfermos,dependentes de substâncias químicas, presos,
mulheres explorada por questão de gênero, étnica e situação
sócio-econômica, crianças e adolescentes em situação de risco
pessoal e social. Eles já não são somente explorados, mas
supérfluos e descartáveis (Diretrizes, 25).
2. Acesso ao trabalho para
todos.
Um dos fenômenos da
globalização econômica é o desemprego estrutural. Ele “se
caracteriza pela diminuição da mão-de-obra empregada na indústria,
pela fragmentação do processo produtivo e pela flexibilização das
relações de trabalho”(Diretrizes 26). Essa situação gera dois
graves problemas. Um diretamente ligado a organização dos
trabalhadores, pois gera a desunião e desmobilização dos mesmos na
luta na defesa de direitos. O outro problema diz respeito à
dignidade do trabalhador, principalmente dos jovens, pois, o
desemprego “destrói a dignidade pessoal, a visão de futuro, e o
sentido de lealdade e solidariedade” (Diretrizes, 26).
O pior de tudo é o novo
aspecto do desemprego referente “a exclusão do trabalho por muito
tempo. Essa situação, corroe a liberdade e a criatividade da pessoa
e as suas relações familiares e sociais, causando enormes
sofrimentos a nível psicológico e espiritual”. Por isso, o
documento lembra um princípio fundamental do Ensino Social da Igreja
que reza: “o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a
pessoa, na sua integridade”, pois, o homem é o protagonista, o
centro e o fim de toda a vida econômico-social”(CV 25).
Em vista da busca de emprego e
melhores condições de vida assistimos grande mobilidade humana
(Diretrizes, 31). As consequências desse fenômeno se fazem sentir
no inchaço das periferias das cidades numa situação de vida
indigna; na perda da identidade cultural; na desestruturação da
família. “Quando se torna endêmica a incerteza sobre as condições
de trabalho, resultante dos processos de mobilidade e
desregulamentação, geram-se formas de instabilidade psicológica,
com dificuldade a construir percursos coerentes na própria vida,
incluindo o percurso rumo ao matrimônio. Consequência disso é o
aparecimento de situações de degradação humana, além de
desperdício de força social” (CV 25).
Pelo fato da economia e a
vontade política não proporcionar trabalho para todos surge o
trabalho informal. Calcula-se que quase a metade da população
economicamente ativa vive do trabalho informal. Este “se vê
submetido à precariedade das condições de emprego e à pressão
constante da subordinação, que traz consigo salários mais baixos e
falta de proteção na área de seguridade social, não permitindo a
muitos o desenvolvimento de uma vida digna”(DA 71).
3. Domínio do poder
econômico sobre o poder político.
O poder econômico das
instituições financeiras e das grandes empresas nacionais e
internacionais impõe suas decisões aos Estados. A estes cabe
administrar essas decisões. Diante dessa situação os Estados não
conseguem ”levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de
suas populações” (diretrizes, 28). E, por outro lado, esses
grandes grupos econômicos, “impondo suas decisões e substituindo
as instâncias políticas, com riscos para a democracia. Certamente,
houve desencanto e diminuição da confiança do povo nos políticos,
nas instituições públicas e nos três poderes do Estado”
(Diretrizes,33).
Na nova conjuntura econômica
o Estado está subordinado ao poder econômico internacional.
“Atualmente o Estado encontra-se na situação de ter de enfrentar
as limitações que lhes são impostas à sua soberania pelo novo
contexto econômico comercial e financeiro internacional,
caracterizado nomeadamente por uma crescente mobilidade dos capitais
financeiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este
novo contexto alterou o poder político do Estado” (CV 24).
A lógica
econômica que predomina na política do governo insiste, sob
pretexto de evitar a inflação, em elevar os juros para favorecer o
mercado financeiro e não os consumidores. Basta dizer que governo
federal gastou em 2008, com a dívida pública, 30,57% do orçamento
da União para irrigar a especulação financeira. E apenas 11,73% do
orçamento com saúde (4,81%), educação (2,57%), assistência
social (3,08%), habitação (0,02%), segurança pública (0,59%),
organização agrária (0,27%), saneamento (0,05%), urbanismo
(0,12%), cultura (0,06%) e gestão ambiental (0,16%).Quem mais paga
impostos são os pobres. Os 10% mais pobres da população destinam
32,8% de sua escassa renda ao pagamento de tributos, enquanto os 10%
mais ricos, que dispõem de mecanismos de isenção tributária,
apenas 22,7% da renda.O ciclo da moderna economia política fecha-se
num mundo auto-suficiente, indiferente a qualquer consideração
ética sobre a vida humana e a preservação da natureza. Os fatos
históricos e a miséria em que vive grande parte da humanidade –
2/3 da população mundial sobrevivem abaixo da linha da pobreza,
segundo a ONU -, põem em questão o rigor e a seriedade dessa
ciência e a bondade das políticas econômicas voltadas mais ao
crescimento e à acumulação da riqueza do que ao verdadeiro
desenvolvimento sustentável.A ONU informa que, em 2009, foram
investidos US$ 18 trilhões para socorrer bancos e empresas ameaçados
de quebra devido às dificuldades econômicas e financeiras. De onde
surgiu esta imensa quantia de dinheiro? A pergunta é pertinente,
pois até então se dizia não haver recursos para garantir os
direitos básicos das pessoas nem para a superação da miséria e da
fome. Nos últimos 49 anos, a ajuda dos países ricos às nações em
desenvolvimento foi de apenas US$ 2 trilhões! Uma mísera esmola ao
longo de quase meio século!A crise financeira comprovou que, por si
só, o mercado é incapaz de reduzir o índice de exclusão social e
assegurar a prosperidade coletiva. Nem é este o seu objetivo. Frei
Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre
outros livros. www.freibetto.org - twitter:@freibetto
4. Crescimento da
violência.
A violência faz parte do
dia-a-dia da vida das pessoas. A maioria das pessoas vive na
insegurança. A violência degrada quem a pratica. E fere a dignidade
humana de quem é vítima dela. Ao mesmo tempo, rompe o tecido social
da harmonia e da convivência pacífica. A violência banaliza a
vida, manifestada em roubos, assaltos, seqüestros e assassinatos. A
violência se reveste de várias formas e tem diversos agentes: o
crime organizado e o narcotráfico, grupos paramilitares, violência
generalizada, tanto na periferia das grandes cidades como no campo,
violência de grupos juvenis e crescente violência intra-familiar”
(Diretrizes, 35).
As causas da violência são
múltiplas, mas podem ser reduzidas numa, a saber, “a ausência de
Deus no coração das pessoas”(diretrizes, 35). A vida sem Deus faz
o pecado germinar no coração das pessoas e no coração da
sociedade organizada. Por isso, a árvore da sociedade está
carregada de maus frutos: “a exclusão, a idolatria do dinheiro, o
avanço da ideologia individualista e utilitarista, a falta de
respeito pela dignidade de cada pessoa, a deteriorização do tecido
social, a corrupção na esfera publica dos três poderes e também
no setor privado, as ramificações com organizações internacionais
do tráfico de drogas, armas, pessoas, paraísos fiscais e lavagem de
dinheiro” (Diretrizes, 35).
5. As populações rurais
desassistidas.
Boa parte das populações
rurais não consegue realizar sua dignidade humana. Elas “sofrem as
conseqüências da pobreza, agravada pela falta de acesso à terra
própria, de financiamento adequado, de condições gerais de vida
digna e de apoio à agricultura familiar. A reforma agrária continua
sendo uma exigência diante da escandalosa concentração de terra
nas mãos de poucas pessoas e grupos econômicos e da violência do
campo” (Diretrizes, 29; DA 723).
O responsável pela atual
situação dos trabalhadores do campo é “modelo de desenvolvimento
econômico capitalista-consumista, que privilegia o mercado
financeiro e o agronegócio. Isso leva a expansão da pecuária
extensiva e das monoculturas de soja, eucalipto, cana-de-açúcar,
assim como a projetos como do biocombustível, em detrimento da
agricultura familiar, da reforma agrária e de projetos populares
como a construções de cisternas, por exemplo, no semi-árido do
país” (Diretrizes, 37)
6. Degradação do Planeta
Terra.
O Planeta Terra no Brasil está
sendo agredido de diversas formas: a biodiversidade que é alvo de
cobiça internacional está sendo destruída e muitas espécies
correm o risco de serem extintas; o acervo de conhecimentos
tradicionais sobre a utilização dos recursos naturais é objeto de
apropriação intelectual ilícita por parte de indústrias
farmacêuticas e de biogenética; o aquecimento global; o exauri
mento dos recursos naturais; a natureza, a terra e a água são
tratadas como mercadorias negociáveis disputadas pelas grandes
potências (Diretrizes, 37).
Esse modo violento de lidar
com o Planeta Terra se origina do “modelo de desenvolvimento
econômico capitalista-consumista, que privilegia o mercado
financeiro e o agronegócio. Isso leva a expansão da pecuária
extensiva e das monoculturas de soja, eucalipto, cana-de-açúcar,
assim como a projetos do biocombustível, em detrimento da
agricultura familiar, da reforma agrária e de projetos populares
como a construções de cisternas, por exemplo, no semi-árido do
país” (Diretrizes, 37).
A preservação da natureza
sofre devido às ações das indústrias extrativistas internacionais
e da agroindústria. Estas com “muita frequência subordina a
preservação da natureza ao desenvolvimento econômico, com danos à
biodiversidade, com esgotamento das reservas de água e de outros
recursos naturais, com a contaminação do ar e a mudança
climática”. Além disso, a região “se vê afetada pelo
aquecimento da terra e mudança climática provocada principalmente
pelo estilo de vida não sustentável dos países
industrializados”(66)(Diretrizes, 28).
O documento de Aparecida é
contundente em apontar as causas “da exploração irracional que
vai deixando um rastro de dilapidação, inclusive de morte por toda
a nossa região”. Em tudo isso, “tem enorme responsabilidade o
atual modelo econômico, que privilegia o desmedido fã pela riqueza,
acima da vida das pessoas e dos povos e do respeito racional pela
natureza. A devastação de nossas florestas e da biodiversidade
mediante uma atitude predatória e egoísta, envolve a
responsabilidade moral dos que a promovem, porque coloca em perigo a
vida de milhões de pessoas, em especial do hábitat dos camponeses e
indígenas, que são expulsos para as terras improdutivas e para as
grandes cidades para viverem amontoados nos cinturões de
miséria”(473). Em seguida, o texto denuncia “uma
industrialização selvagem e descontrolada” que tanto no campo
quanto na cidade contamina “o ambiente com todo tipo de dejetos
orgânicos e químicos”. A mesma situação acontece com as
indústrias extrativas. É necessário “controlar e neutralizar
seus efeitos danosos sobre o ambiente circundante”, pois “produzem
a eliminação das florestas, a contaminação da água e transformam
as regiões exploradas em imensos desertos” (473).
O que se faz necessário é
“progredir em seu desenvolvimento agro-industrial para valorizar as
riquezas de suas terras e suas capacidades humanas a serviço do bem
comum” (473).
7. Ecletismo e
homogeneização cultural
No plano cultural, antes, as
culturas eram bastante bem definidas e, por isso, podiam defender-se
da homogeneização cultural. Hoje, cresce notavelmente a
possibilidade de interação cultural através do diálogo
intercultural. Este será eficaz na medida em que os interlocutores
mantenham sua específica identidade. Se isso não acontece corre-se
o perigo do ecletismo cultural, isto é, colocar lado a lado as
diversas culturas considerando-as substancialmente equivalentes e
intercambiáveis, muitas vezes, sem realizar um autêntico
discernimento (26).
No plano social, pode-se cair
no relativismo cultural onde grupos culturais se juntem e convivem,
mas separados e sem um verdadeiro diálogo que leve a uma verdadeira
integração. Por outro lado, pode surgir o perigo oposto no sentido
de nivelamento ou de homogeneização cultural de comportamentos e
estilos de vida. Com isso, perde-se o significado profundo da cultura
das diversas nações, das tradições de diversos povos em cuja
esfera a pessoa se confrontava com questões fundamentais da vida
(26).
Tanto o ecletismo quanto o
nivelamento cultural conseguem, no fundo, separar a cultura da
natureza humana. “assim, as culturas deixam de saber encontrar a
sua medida numa natureza que a transcende,acabando por reduzir o
homem a simples dado cultura. Quando isso acontece, a humanidade
corre novos perigos de servidão e manipulação” (26).
II. Os desafios do
desenvolvimento técnico segundo a Cartas in Veritate.
A reflexão sobre o
desenvolvimento dos povos e a técnica faz sentido na medida em “
que o problema do desenvolvimento está estritamente unido ao
progresso tecnológico, com suas deslumbrantes aplicações no campo
biológico”. Em seguida, define a técnica como “um dado
profundamente humano, ligado a autonomia e a liberdade do homem”.
Ela “permite dominar a matéria, reduzir os riscos, poupar fadigas,
melhorar as condições de vida”. Ela é “considerada como obra
do gênio humano, o homem reconhece-se a si mesmo e realiza a própria
humanidade”. “A técnica é o aspecto objetivo do agir humano
cuja origem e razão de ser estão no elemento subjetivo: o homem que
atua”. Nesse sentido, ela “manifesta o homem e suas aspirações
ao desenvolvimento, exprime a tensão do ânimo humano para uma
gradual superação de certos condicionamentos materiais. Assim a
técnica insere-se no mandato de ‘cultivar e guardar a terra’ (Gn
2, 15) que Deus confiou ao homem, e há de ser orientado para
reforçar aquela aliança entre o ser humano e o ambiente em que se
deva refletir o amor criador de Deus” (69).
1. Mentalidade tecnicista.
O documento preocupa-se na
possibilidade do desenvolvimento tecnológico deixar-se ‘induzir’
pela “idéia de auto-suficiência da própria técnica”. Isso
acontece quando o ser humano interroga-se “apenas sobre o como” e
esquece “de considerar os muitos porquês pelos quais é impelido a
agir”. Por isso, “a técnica apresenta-se com uma fisionomia
ambígua”. De um lado, ela expressa a “criatividade humana como
instrumento de liberdade da pessoa”. E de outro, ela “pode ser
entendida como elemento de liberdade absoluta”, isto é, “que
prescinde dos limites que as coisas tragam consigo”. Nesse caso,
entra o processo de globalização. Este “poderia substituir as
ideologias com a técnica, passando esta a ser um poder ideológico
que exporia a humanidade ao risco de ser ver fechada dentro de um a
priori do qual não poderia sair para encontrar o ser e a verdade”.
Numa palavra, o ser humano busca em si mesmo o sentido de tudo o que
acontece em sua vida. É uma ‘visão muito forte hoje’,
denominada “mentalidade tecnicista” na qual “o único critério
de verdade é a eficiência e a utilidade”. Nesse sentido, se tem
uma concepção de desenvolvimento voltada exclusivamente no fazer.
Porém, “a chave do desenvolvimento é uma inteligência capaz de
pensar a técnica e de individualizar o sentido plenamente humano do
agir do homem, no horizonte de sentido da pessoa vista na
globalidade de seu ser. Mesmo quando atua mediante um satélite ou um
comando eletrônico à distância, o seu agir continua sempre humano,
expressão de uma liberdade responsável”. Esta o é verdadeira na
medida em que seja “fruto de responsabilidade moral. Daí a
necessidade de uma urgente “formação para a responsabilidade
ética no uso da técnica” (70).
2. Tecnização da
economia.
A possibilidade da
“mentalidade tecnicista” acontece “nos fenômeno da tecnização
do desenvolvimento e da paz. Aquele é “considerado um problema de
engenharia financeira, de abertura dos mercados, da redução das
tarifas aduaneiras , de investimentos produtivos, de reformas
institucionais”. Tudo isso é necessário. No entanto, “as opções
do tipo técnico tenham resultado apenas de modo relativo” porque o
“desenvolvimento não será jamais garantido completamente por
forças de certo modo automático e impessoais, seja elas as do
mercado ou as da política internacional”. A razão de tudo isso,
está no fato de que o desenvolvimento só é possível com “homens
retos”, isto é, “operadores econômicos e homens políticos que
sintam intensamente em suas consciências o apelo do bem comum”.
Caso contrário, “verifica-se uma confusão entre fins e meios:
como único critério de ação, o empresário considerará o máximo
lucro da produção; o político, a consolidação do poder; o
cientista, o resultado de suas descobertas”. O resultado disso, é
prática da injustiça e o uso dos conhecimentos técnicos “em
benefício dos seus proprietário, enquanto a situação real das
populações que vivem sob tais influxos, e quase sempre na sua
ignorância, permanece imutável e sem efetivas possibilidade de
emancipação” (71).
3. Os meios de comunicação
social a serviço dos interesses econômicos e políticos.
No âmbito do desenvolvimento
tecnológico encontramos os meios de comunicação social. È “quase
impossível imaginar a existência da família humana sem eles”. O
documento contesta a visão daqueles que reivindicam a neutralidade
deles que tem como “conseqüência a sua autonomia relativamente à
moral que diria respeito às pessoas”. Essa postura é denomina de
“verdadeiramente absurda”. Os meios de comunicação social muita
vezes enfatizam sua natureza estritamente técnica’. Eles ficam
subordinados “a cálculos econômicos, no intuito de dominar os
mercados e, não último, ao desejo de poder ideológico e político”.
Além disso, condicionam “o modo de ler e conhecer a realidade e a
própria pessoa humana”. Por isso, “torna-se necessário uma
atenta reflexão sobre sua influência principalmente na dimensão
ético-cultural da globalização e do desenvolvimento dos povos”.
Aí reside seu sentido e sua finalidade: “tornar-se ocasião de
humanização, não só quando (...) oferecem maiores possibilidade
de comunicação e de informação, mas também e sobretudo quando
são organizados e orientados à luz de uma imagem da pessoa e do bem
comum que traduza os valores universais”. Desse modo, os meios de
comunicação social estariam “centrados na promoção da dignidade
das pessoas e dos povos, animados expressamente pela caridade e
colocados ao serviço da verdade, do bem e da fraternidade natural e
sobrenatural”. Essa seria sua contribuição ao verdadeiro
desenvolvimento dos povos. (72).
4. O absolutismo da técnica
na manipulação da vida.
Outro campo onde entra em jogo
o absolutismo da técnica é o da bioética. Aí está em jogo a
“própria possibilidade de um desenvolvimento humano integral”. O
que mesmo está em jogo é “saber se o homem se produziu por si
mesmo ou depende de Deus”. Em vista do avanço da intervenção da
técnica o ser humano se encontra diante de duas concepções: “a
da razão aberta a transcendência ou da razão fechada na
imanência”. A postura da Igreja é a de que “a razão sem fé
está destinada a perder-se na ilusão da própria onipotência,
enquanto a fé sem a razão corre o risco do alheamento da vida
concreta das pessoas”(74).
Mais do que nunca a questão
social “tornou-se radicalmente antropológica, enquanto toca o
próprio modo não só de conceber, mas também de manipular a vida,
colocando-a cada vez mais nas mãos do homem pelas biotecnologias”.
Aqui entra a “fecundação in vitro, a pesquisa sobre embriões, a
possibilidade da clonagem e hibridação humana”. Nesse campo o ser
humano acha que já desvendou todos os “mistérios porque já
chegou à raiz da vida”.
Além disso, estamos diante de
“novos e poderosos instrumentos que a cultura da morte tem à sua
disposição”: ‘a chaga do aborto; “uma sistemática
planificação eugenética dos nascimentos; “a mens eutanásia”.
O que está em causa nisso tudo é uma cultura negacionista da
dignidade humana, isto é, “uma concepção material e mecanicista
da vida humana”. Quais são os efeitos de tal mentalidade sobre o
desenvolvimento? Essa mentalidade de indiferença no que diz respeito
ao que é humano e com aquilo que não é humano levam a muitos a se
escandalizar por coisas marginais e a tolerar injustiças inauditas.
“Enquanto os pobres do mundo batem às portas da opulência, o
mundo rico corre o risco de deixar de ouvir tais apelos à sua porta
por causa de uma consciência já incapaz de reconhecer o
humano”(75).
5. A redução do ser
humano a sua dimensão psíquica e neurológica.
O espírito tecnicista também
se faz presente quando “considera os problemas e as emoções
ligados à vida interior somente do ponto de vista psicológico,
chegando-se mesmo ao reducionismo neurológico”. Esta visão,
muitas vezes, reduz o eu ao psíquico, e a saúde da alma é
confundida com o bem-estar emotivo”. “Na base, estas reduções
tem uma profunda incompreensão da vida espiritual e levam-nos a
ignorar que o desenvolvimento do homem e dos povos depende
verdadeiramente também da solução dos problemas de caráter
espiritual”. Isto implica conceber o ser humano como um “ser
uno”, composto de alma e corpo, nascido do amor criador de Deus e
destinado a viver eternamente”. O desenvolvimento humano acontece
quando o ser humano: “cresce no espírito; “sua alma se conhece a
si mesma e apreende as verdades que Deus nela imprimiu em gérmen”;
“dialoga consigo mesmo e com seu Criador”. Os fenômenos da
alienação social e psicológica e as inúmeras neuroses presentes
nas sociedades opulentas tem também causas de ordem espiritual. O
mesmo acontece em relação a escravidão da droga e o desespero que
se abate em tantas pessoas. “O vazio em que alma se sente
abandonada, embora no meio de tantas terapias para o corpo e para o
psíquico, gera sofrimento. Não há desenvolvimento pleno nem bem
comum universal sem o bem espiritual e moral das pessoas,
consideradas na sua totalidade de alma e corpo” (76).
O absolutismo da técnica cega
os olhos da mente e do coração para perceber aquilo que não se
explica meramente pela matéria. “Todo o nosso conhecimento, mesmo
o mais simples, é sempre algo que está além do dado empírico”.
Em tudo, há sempre algo a mais a ser considerado. “Em cada
conhecimento e em cada ato de amor, a alma do homem experimenta um
‘extra’ que se assemelha muito a um dom recebido, a uma altura
para a qual nos sentimos atraídos”. O mesmo se diz em relação ao
desenvolvimento. Nele há “um ‘mais além’ que a técnica não
pode dar”. Esse algo mais só a “força propulsora da caridade na
verdade pode oferecer”(77).
III. Avaliação moral dos
mecanismos econômicos.
A globalização entendida
como “fenômeno de relações de nível planetário” é “uma
conquista da família humana” e “favorece o acesso a novas
tecnologias, mercados e finanças”. Isso possibilitou “altas
taxas de crescimento” da economia regional e, “particularmente
seu desenvolvimento urbano”. Por outro lado, a “globalização
comporta o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro em
valor supremo. Daí a necessidade dela ser regida “pela ética,
colocando tudo a serviço da pessoa humana, criada a imagem e
semelhança de Deus” (60). Além disso, a globalização comete
quatro pecados: a) Celebra “freqüentes Tratados de Livre comércio
entre países com economias assimétricas, que nem sempre beneficiam
os países mais pobres”; b) Pressiona “os países da região com
exigências desmedidas em matérias de propriedade intelectual, a tal
ponto que se permitem direitos de patentes sobre a vida em todas as
formas”; c) A “utilização de organismos geneticamente
manipulados tem mostrado que nem sempre a globalização contribui
para o combate contra a fome, nem para o desenvolvimento rural
sustentável” (67); e) Promove surgimento de novos rostos de pobres
e excluídos: “os migrantes, as vítimas da violência, os
deslocados e refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e
seqüestros, os desparecidos, os enfermos de HIV e de enfermidades
endêmicas, os tóxicos-dependentes, idosos, meninos e meninas que
são vítimas da prostituição, pornografia de violência ou do
trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas da exclusão e do
tráfico para a exploração sexual, pessoa com capacidades
diferentes, grandes grupos desenpregados/as, os excluídos pelo
analfabetismo tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes
cidades, os indígenas e afro-americanos, os agricultores sem terra e
os mineiros (402).
João Paulo II teve a
clarividência, na encíclica Solicitude Social, de perceber a lógica
que move o desenvolvimento econômico denominado capitalista. “É
necessário denunciar a existência de mecanismos econômicos,
financeiros e sociais que, embora conduzidos por vontade dos homens,
funcionam muitas vezes de maneira automática, tornando mais rígidas
as situações de riqueza de uns e da pobreza de outros. Estes
mecanismos, manobrados – de maneira direta ou indireta – pelos
países desenvolvidos, com seu próprio funcionamento favorecem os
interesses de quem os manobra, mas acabam por sufocar ou condicionar
as economias dos países menos desenvolvidos” (SRS 16).
O documento olha do ponto de
vista teológico o funcionamento dos mecanismos econômicos,
financeiros e sociais e observa “que entre as nações e as
atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo e as
‘estruturas’ a que elas induzem, as mais características hoje
parecem ser sobretudo duas: por um lado, há avidez exclusiva de
lucro; e, por outro lado, a sede de poder, com o objetivo de impor
aos outros a própria vontade. A cada um destes comportamentos pode
juntar-se, para os caracterizar melhor, a expressão: ‘a qualquer
preço’. Em outras palavras, estamos diante da absolutização dos
comportamentos humanos, com todas as consequências possíveis”(SRS
37).
Esse tipo de comportamento
social da parte dos detentores do poder econômico, fruto do pecado,
prejudica não somente os indivíduos, mas também as nações. E
pode-se dizer que configuram ‘estruturas de pecado’, isto é, o
“conjunto dos fatores negativos, que agem no sentido contrário a
uma verdadeira consciência do bem comum universal e á exigência de
o favorecer, dá a impressão de criar, nas pessoas e nas
instituições, um obstáculo difícil de superar” (SRS 36). Do
ponto de vista moral, “por detrás de certas decisões,
aparentemente inspiradas só pela economia e pela política, se
escondem verdadeiras formas de idolatria: do dinheiro, da ideologia,
da classe e da tecnologia” (SRS 37).
O remédio moral e social para
superar as denominadas estruturas de pecado é a virtude da
solidariedade assim entendida: “não é um sentimento de compaixão
vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas
pessoas, próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação
firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem
de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente
responsáveis por todos”. Esta determinação está fundada na
firme convicção de que as causas que entravam o desenvolvimento
integral são aquela avidez do lucro e aquela sede de poder de que se
falou acima. Estas atitudes e estas ‘estruturas de pecado’ só
poderão ser vencidas – pressupondo o auxílio da graça divina –
com uma atitude diametralmente oposta: a aplicação em prol do bem
do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, para
‘perder-se’ em benefício do próximo em vez de o explorar, e
para ‘servi-lo’ em vez de o oprimir para proveito próprio “(Mt
10, 40-42; 20, 25; Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-27).
“O mesmo critério
aplica-se, por analogia, nas relações internacionais. A
interdependência deve transformar-se em solidariedade, fundada sobre
o princípio de que os bens da criação são destinados a todos;
aquilo que a indústria humana produz, com a transformação das
matérias-primas e com a contribuição do trabalho, deve servir
igualmente para todos”(SRS 39).
IV. A fé inspira a
militância cristã na prática política
1. A prática política de
Jesus
O modo de ser e de agir de
Jesus concretizou de forma plena o modo de ser e de agir de Deus no
meio de seu povo. Toda a missão de Jesus foi ao sentido de libertar
o povo de Deus de todos os males que o afligiam. Jesus recebeu de seu
Pai a missão de proporcionar vida em abundância para todos (Jo 10,
10). Nela os pobres são privilegiados (Lc 4, 14-21). A vida em
abundância tem uma dimensão pessoal que inclui a fé e a conversão
(exige partilha de bens: caso de Zaqueu) ao Evangelho (Mc 1, 15) e
uma dimensão político-social que liberta da doença, da fome e da
exclusão social (Lc 4, 1ss; 6, 20-26; Mt 25, 41ss). Na dimensão
social entra também a denúncia profética de Jesus contra a lei
religiosa que não leva em conta a justiça e a misericórdia (Mt 23,
23); contra o poder usado para dominar e explorar (Mc 10, 41-45);
contra os ricos que excluem Deus e o próximo de seu programa de vida
pessoal e social (Mt 19, 23; 13, 22; Lc 16, 19-31).
A prática de amor de Jesus
que liberta o povo de seus males concretos aponta para uma ação
política que privilegie os pobres e excluídos da sociedade. Jesus
mostra que a política que não liberta os pobres e excluídos de
seus males sociais não tem validade, nem sentido, pois não está a
serviço da dignidade de todo ser humano.
Jesus por amor a humanidade se
despojou de todo poder e glória divina para se tornar igual a nós
em tudo, menos no pecado. Ele quis se colocar a serviço de todos:
"Eu vim para servir e não para ser servido" (Mc 10, 45).
Na perspectiva do Reino de Deus vivido, pregado e construído por
Jesus poder é serviço pelo bem pessoal e social (Mc 10, 32-45). Ele
vem de Deus (Jo 19, 11). E segundo a prática de Jesus o poder só
tem sentido se exercitado a partir do conteúdo essencial do Reino de
Deus, o amor a Deus e o amor ao próximo. O gesto, por excelência,
de Jesus é o lava-pés, símbolo de serviço (Jo 13, 12-17). Nele
fica evidente que toda e qualquer ação dirigida ao outro é
conforme a vontade de Deus se for para tornar sua condição de vida
mais humana. Nessa perspectiva, o poder só é legitimo se colabora
na comunhão das pessoas com Deus e das pessoas entre si em nível
local e internacional.
A atitude de Jesus diante da
alternativa de pagar ou não tributo a César (Mt 12, 13-17)
esclarece a tipo de relação que os seguidores Dele devem ter diante
do Estado. O que significa dar a Deus o que é de Deus. E dar a César
o que é de César? Significa que Jesus “dessacraliza o poder
político que era divinizado. Ao mesmo tempo, reconhece sua legítima
autonomia, estabelecendo uma dualidade (não dualismo) entre a
instância religiosa e a instância política. Afirmar a necessidade
do Poder na estrutura de uma sociedade, como algo que vem de Deus,
como declarou a Pilatos: Não terias poder sobre mim se não te
houvesse sido dado do alto” (CNBB 40, 205).
2. A prática política da
Igreja
A ação da Igreja em relação
à política é pautada pela fé na pessoa de Jesus Cristo. Ele
evangelizou, isto é, trouxe a boa notícia da salvação de Deus
para a vida pessoal e social do ser humano. Por isso: “A fé não
despreza a atividade política; pelo contrário, a valoriza e a tem
em alta estima. A Igreja, falando ainda em geral, sem distinguir o
papel que compete aos seus diversos membros – sente como seu dever
e direito estar presente nesse campo da realidade: porque o
cristianismo deve evangelizar a totalidade da existência humana,
inclusive a dimensão política. Por isso ela critica aqueles que
tendem a reduzir o espaço da fé à vida pessoal e familiar,
excluindo a ordem profissional, econômica, social e política, como
se o pecado, o amor, a oração e o perdão não tivessem importância
aí” (P 514-515).
A Igreja usa dois sentidos
para a palavra política. O primeiro, diz respeito a toda e qualquer
ação que vise o bem comum. Nesse sentido, o papel da Igreja
consiste em precisar os valores fundamentais de toda a comunidade
humana – a solidariedade, a subsidiariedade e a participação.
Viver e praticar a política no sentido de realizar o bem comum
significa para a Igreja uma forma de dar culto ao único Deus vivo e
verdadeiro (CNBB, 38, 103; Puebla 521). Esse jeito de fazer política
inclui todo batizado independentemente da função que exerce na
Igreja. É bom salientar que esse modo de praticar a política
acontece, principalmente, de um jeito organizado e coletivo. Os
principais meios são as Pastorais Sociais, as Comunidades Eclesiais
de Base, os movimentos sociais, os Conselhos Paritários, as ONGs, os
sindicatos, etc.
O segundo sentido da palavra
política para a Igreja é o exercício do poder e da prática da
política partidária. Ela é um meio privilegiado de se construir o
bem comum. Isso acontece através “dos grupos de cidadãos que se
propõem conseguir e exercer o poder político para resolver as
questões econômicas, políticas e sociais, segundo seus próprios
critérios ou ideologias" (CNBB 38, 103; Puebla 524). A Igreja
delega aos leigos a missão de agir na política partidária. “A
política partidarista é o campo próprio dos leigos (GS 43).
Corresponde a sua condição leiga constituir e organizar partidos
políticos, com ideologia e estratégia adequada para alcançar seus
legítimos fins. O leigo encontra na doutrina social da Igreja os
critérios adequados, à luz da visão cristã do homem. Por outro
lado, a hierarquia lhe garantirá sua solidariedade, favorecendo sua
formação e sua vida espiritual e estimulando-o em sua criatividade
para que procure opções cada vez mais conformes com o bem comum e
as necessidades dos mais fracos” (P. 524-525).
Uma
coisa é certa para a Igreja: os cristãos não podem ficar de braços
cruzados diante da tarefa de construir uma sociedade mais justa e
solidária através da política nos dois sentidos citados acima.
“Evitar que os leigos reduzam sua ação no âmbito intra-eclesial,
impulsionando-os a penetrar os ambientes sócio-culturais e serem
eles os protagonistas da transformação da sociedade à luz do
Evangelho e da Doutrina Social da Igreja” (DSD 98).
Não se comprometer com o
próximo através da prática política consiste em colocar em risco
a própria salvação. “O cristão que falta ou que é omisso às
suas obrigações temporais falta a seus deveres para com o próximo,
falta, sobretudo às suas obrigações com Deus e põe em perigo a
sua salvação eterna” (GS, 43).
3. Participação:
princípio da prática política do cristão
A participação é outro
princípio ético-social que orienta a reflexão e o comportamento
político-social de todos os membros da Igreja na construção de uma
sociedade justa e solidária. Ele é definido como "o
envolvimento voluntário e generoso da pessoa nas relações sociais.
É necessário que todos participem, cada um conforme o lugar que
ocupa e o papel que desempenha, na promoção do bem comum. Este
dever é inerente à dignidade da pessoa humana" (CIC 1913). E
tem como conseqüência a realização da justiça social, condição
indispensável para uma nova convivência humana (FS p. 53).
“O cristão tem o dever de
participar também ele nesta busca diligente, na organização e na
vida da sociedade política. Ser social, o homem constrói o seu
destino, numa série de grupos particulares que exigem, como seu
complemento e como condição necessária para o próprio
desenvolvimento, uma sociedade a mais ampla, de características
universais, a sociedade política. Toda a atividade privada deve
enquadrar-se nesta sociedade ampliada e toma, por si mesmo, a
dimensão do bem comum" (OA, 24; CDSI 189).
A participação eficaz na
construção do bem comum requer duas condições básicas
fundamentais:
a) Necessidade de uma
educação adequada
A participação qualitativa
na vida política requer uma educação adequada “tanto para o povo
como, sobretudo, para a juventude a fim de que todos os cidadãos
possam desempenhar seu papel na vida da comunidade política” (GS
75, 4).
Uma forma de motivar a
participação política dos cristãos é a promoção de cursos,
grupos de reflexão, formação e ação (Diretrizes gerais da ação
evangelizadora da Igreja no Brasil: DGAEIB 2008-2009, 187).
Outro elemento importante na
educação política é a informação sobre os direitos de cada um e
o reconhecimento dos deveres de cada um em relação aos outros. É
bom salientar que o sentido e a prática do dever sofrem o
condicionamento do domínio de si mesmo, a aceitação das
responsabilidades e das limitações impostas ao exercício da
liberdade do indivíduo ou do grupo (OA 24, 2).
b) Exercício da cidadania
plena
O exercício da participação
leva ao compromisso de transformar a sociedade onde o bem comum é a
prioridade das prioridades. O primeiro passo é assumir as próprias
responsabilidades com a comunidade e a sociedade através da
participação democrática. Não se deixar guiar pelo individualismo
e corporativismo. Isso acontece através:
- da co-responsabilidade na
gestão dos bens públicos (escolas, postos de saúde, orçamento
municipal) através da participação nos conselhos paritários (da
saúde, da assistência social, da criança e adolescente...).
Acompanhar, apoiar, fiscalizar as Câmeras Municipais, as Assembléias
Legislativas, o Congresso Nacional, o Poder Executivo e Judiciário
para saber onde são gastos os recursos públicos. Assim o Estado
estará a serviço dos interesses da população e não de poucos
privilegiados.
- do cuidado na escolha dos
representantes do povo; avaliar o desempenho dos partidos e
acompanhar a atuação dos eleitos.
- da promoção da formação
política e do estudo dos programas dos partidos. E de outras
iniciativas (cartilhas, palestras, debates e escolas de fé e
política).
- do incentivo da participação
nos partidos, nos sindicatos e nos movimentos sociais.
- da intensificação da ação
social em parceria com os poderes públicos, outras Igrejas e com as
ONGs (Organizações Não Governamentais).
- de outros instrumentos de
participação ativa do povo: plebiscito, referendo, participação
nos orçamentos municipais.
- do favorecimento da
participação dos excluídos na vida da sociedade. “... se torna
imprescindível à exigência de favorecer a participação,
sobretudo dos menos favorecidos no mundo da política na defesa de
seus direitos” (CDSI 189; P. 1162).
V. A fé inspira a
militância cristã na ética
1. A ética pessoal do
militante
A caridade é a essência da
vida cristã. Ela “é o princípio não só das microrelações
estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também
das macrorelações como relacionamentos sociais, econômicos,
políticos”(CV 2). Ela é dom de Deus. “a sua nascente é o amor
fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo filho,
desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor
redentor, pelo qual fomos recriados. Amor revelado e vivido por
Cristo” (Jo 13, 1) (CV 2).Ele o testemunho, sobretudo, “com a sua
morte e ressurreição” (CV 1). Deus derrama esse amor “em nossos
corações pelo Espírito Santo”(Rm 5, 5) (CV 5).
O ser humano recebe o amor de
Deus como graça, Ed de ‘graça’. E é chamado por Deus a ser
instrumento da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes
de caridade (CV 5). Ela é “força propulsora principal para o
verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira”
(...). è “uma força extraordinária, que impele as pessoas a
comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e
da paz” (CV 1).
O documento acentua que é de
fundamental importância relacionar a caridade com a verdade. “Sem
a verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um
invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco
fatal do amor numa cultura sem verdade” (CV 3). Por outro lado, um
“cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente
confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a
convivência social, mas marginais. Deste modo, deixaria de haver
verdadeira e propriamente lugar par Deus no mundo” (CV 4). “Em
Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa, uma
vocação a nós dirigida para amarmos os nossos irmãos na verdade d
seu projeto. De fato, Ele mesmo é a Verdade” (Jo 14, 6).
Os mistérios da
espiritualidade cristã conduzem a atitudes básicas que conformam o
comportamento ético do militante. “Falamos aqui, em primeiro
lugar, dos grandes imperativos morais do militante, imperativos esses
ligados às virtudes cardeais: prudência, (dispõe a razão prática
a discernir em qualquer circunstância nosso verdadeiro bem e os
meios adequados para realizá-lo), justiça, (vontade constante e
firma em da a Deus e ao próximo o que lhes é devido)temperança,
(modera a atração pelos prazeres e procura o equilíbrio no uso dos
bens criados) fortaleza (dá segurança nas dificuldades,firmeza e
constância na procura do bem). Eis os principais:
- amor pela coisa pública;
- opção preferencial pelos
pobres e excluídos;
- espírito de serviço ao
povo;
- magnimidade ou grandeza de
alma, que leva a transcender toda mesquinharia e ser generoso no
perdão e na reconciliação para com todos, mesmo para com os
inimigos;
- fortaleza na luta, mesmo sob
as ameaças de morte;
- parresia, ou coragem de
dizer a verdade, incluindo a denúncia profética;
- inconformismo e rebeldia
contra toda injustiça;
- sobriedade como padrão de
vida (pobreza evangélica);
- valorização do que é
pequeno, mas seminal;
- modéstia ou humildade
política;
- simplicidade das pombas,
dialeticamente aliada à prudência das serpentes (Mt 10, 16);
- mansidão evangélica, ou
seja, ânimo pacífico, que prefere lançar mão dos meios
não-violentos, por atuarem sobre as consciências e serem acessíveis
a todos (Mt 10, 16).
Falamos, em segundo lugar,
daqueles imperativos básicos que estão no fundo dos comportamentos
acima e que se situam do lado das “virtudes teologais”: fé,
esperança e caridade. Eis alguns deles:
- a confiança da Graça,
sempre mais forte que o pecado (Rm 6, 20), graça que pode
transformar os corações mais inflexíveis a abrir as situações
mais fechadas;
- o senso da Cruz nos
contextos de perseguição e d martírio, conseqüências do empenho
para instaurar a justiça e a solidariedade;
- a perseverança frente à
adversidade e ao bloqueio dos horizontes históricos, ‘esperando
contra toda a esperança’ e acreditando que ‘o assassino não
prevalecerá para sempre desde a vítima’ (M. Horkheimer);
- a alegria do Espírito,
virtude que se mantém mesmo no seio da luta e da provação.
Como se vê, aqui estamos no
campo da ética política, que é de per si distinta da
espiritualidade. Pois a ética consiste em imperativos e deveres,
enquanto espiritualidade vive de verdades e certezas. “Mas, para
ser efetiva e se difundir, a ética precisa estar animada de dentro
por uma espiritualidade e nela se enraizar”. P. 205-206).
2. O bem comum: princípio
ético do Estado
O princípio do bem comum
expressa qual dever ser o comportamento do Estado em relação ao
povo que governa e administra. Sua razão de ser, de existir e de
agir está vinculada ao bem comum. “A comunidade política existe
precisamente em vista do bem comum; nele ela encontra a sua completa
justificação e significado, e dele deriva seu direito natural e
próprio” (GS 75).
Em que consiste o bem comum?
Ele se realiza na medida em que se cria “todas as condições
sociais para que toda e qualquer pessoa ... possa desenvolver
plenamente a sua dignidade” (PT 53). Em outras palavras, ele se
concretiza “no conjunto de todas as condições de vida social que
consistam e favoreçam o desenvolvimento integral da pessoa
humana"(MM 62). O bem comum é superior ao bem privado, mas
inseparável do bem da pessoa. O bem comum nacional é a
responsabilidade e a própria razão de ser do Estado que só pode
realizar aquilo que promove o bem de todos sem discriminação.
A responsabilidade primeira do
Estado de promover o bem comum, não isenta todos os cidadãos, em
nível pessoal e em nível de grupos organizados, de contribuir na
promoção do bem comum. Nesse sentido, todos devem empregar “bens
e serviços na direção indicada pelos governantes, dentro das
normas da justiça e na devida forma e limites de competência” (PT
53).
Para compreender melhor o
alcance concreto do bem comum destacamos quatro aspectos
fundamentais:
a) Respeitar e garantir os
direitos fundamentais de todas as pessoas.
"Em nome do bem comum os
poderes públicos são obrigados a respeitar os direitos fundamentais
e inalienáveis da pessoa humana. A sociedade é obrigada a permitir
que cada um de seus membros realize sua vocação. Em particular, o
bem comum consiste nas condições para exercer as liberdades
naturais indispensáveis ao desabrochar da vocação humana. 'Tais
são os direitos de agir segundo a norma reta da consciência, o
direito à proteção da vida particular e à justa liberdade, também
em matéria religiosa"(CIC 1907).
"O desenvolvimento é o
resumo de todos os deveres sociais. É claro, cabe a autoridade
servir de árbitro, em nome do bem comum, entre os diversos
interesses particulares. Mas ela deve tornar acessível a cada um
aquilo de que precisa para levar uma vida verdadeiramente humana:
alimento, vestuário, saúde, trabalho, educação e cultura,
informação conveniente, direito de fundar um lar, etc"(CIC
1908).
b) Promove a paz na
sociedade.
Só pode viver dignamente e
desenvolver-se integralmente quem vive pessoal e coletivamente numa
sociedade onde reina a paz. Ela consiste numa"... ordem justa,
duradoura e segura. Supõe, portanto, que a autoridade assegure, por
meios honestos, a segurança da sociedade e a de seus membros,
fundamentando o direito à legítima defesa pessoal e coletiva"(CIC
1909).
c) Priorizar os pobres nas
políticas públicas.
Numa sociedade desigual, como
a nossa, os que têm sua dignidade ameaçada merecem uma atenção
especial de toda a sociedade. "A sociedade inteira deve ser
solidária com todos os homens, solidária, em primeiro lugar com o
homem que tem mais necessidade de auxílio, o pobre. A opção pelos
pobres é uma opção cristã; é também uma opção da sociedade
que se preocupa com o verdadeiro bem comum"(CNBB 38, 94).
d) Construir o bem comum
internacional
Diante do mundo globalizado
onde as interdependências entre as nações são cada vez maiores se
faz necessário pensar e promover o bem comum em nível
internacional. Ele é denominado como o bem da comunidade das nações
(CA, 52). "As dependências humanas se intensificam. Estende-se
aos poucos à terra inteira. A unidade da família humana, reunindo
seres que gozam de uma dignidade natural igual, implica um bem comum
universal. Este exige uma organização da comunidade das nações
capaz de 'atender às várias necessidades dos homens, tanto no campo
da vida social (alimentação, saúde, educação...) quanto em
certas condições particulares que podem surgir cá ou lá, tais
como a necessidade (...) de acudir aos sofrimentos dos refugiados
(...) bem como de ajudar os emigrantes e suas famílias" (CIC
1911).
VI. A fé inspira a
militância cristã na prática da justiça social
Um dos frutos do amor ao
próximo é a justiça. Segundo nossa fé o amor é fruto do
Espírito Santo. E ele não está desligado do amor ao próximo. Diz
Jesus: "amarás o teu próximo como a ti mesmo." (Mt22,
39-40; LC 55).
“O amor evangélico e a
vocação de filho de Deus, à qual todos os homens são chamados,
tem como conseqüência a exigência, direta e imperativa, do
respeito de cada ser humano em seus direitos à vida e à dignidade.
Não existe distância entre o amor ao próximo e a vontade de
justiça. Opor amor e justiça seria desnaturar a ambos. Mais ainda,
o sentido da misericórdia completa o da justiça, impedindo a esta
última de se fechar no círculo da vingança"(LC 57).
João Paulo II está bem
consciente da ligação entre amor ao próximo e a promoção da
justiça. Diz ele: "O amor ao homem - em primeiro lugar ao
pobre, no qual a Igreja vê Cristo - concretiza-se na promoção da
justiça. Esta nunca se poderá realizar plenamente, se os homens não
deixarem de ver nos necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um
inoportuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem
em si, a possibilidade de uma riqueza maior" (CA58).
O amor próximo, no campo
político, se identifica com a justiça social. "A Igreja fala
de justiça social para definir o que compete à sociedade para
garantir as condições e os meios básicos que permite aos grupos,
as associações e às pessoas obter o que lhes é necessário
segundo a sua natureza e vocação. Por isso, a justiça social está
ligada ao bem comum e ao exercício da autoridade"(CIC 1928).
A justiça social está
intimamente ligada ao bem comum. "É próprio da justiça
social, impor aos membros da comunidade tudo o que é necessário ao
bem comum. Porém, do mesmo modo como num organismo vivo provemos as
necessidades do corpo inteiro fornecendo a cada uma de suas partes e
a cada um de seus membros o que lhes falta para que cumpram suas
funções, assim também, em toda a coletividade, é preciso que se
dê a cada uma das partes e a cada um de seus membros - ou seja,
homens que tenha a dignidade de pessoas - aquilo que lhes é
necessário para o cumprimento de suas funções sociais" (DR
51). "A realização da justiça social produzirá uma intensa
atividade de toda a vida econômica na paz e na ordem, manifestando
assim a saúde do corpo social, do mesmo modo como a saúde do corpo
humano se reconhece pela harmoniosa e benfazeja sinergia das
atividades orgânicas" (DR 51).
A justiça social também diz
respeito a tudo aquilo que é uma exigência mínima para a
vida dos seres humanos. Hoje o meio principal para
obter condições dignas de vida é o trabalho bem remunerado.
. "A justiça social exige que os operários possam ter
garantido a sua própria subsistência e a de sua família por meio
de um salário adequado; que seja habilitado a conquistar modestos
haveres a fim de prevenir um pauperismo generalizado, que é uma
verdadeira calamidade; que sejam amparados por um sistema de
previdência pública ou privada que os proteja na velhice, na doença
ou no desemprego" (DR 52).
A justiça social comporta
freqüentemente a exigência de adaptação ou de reformas
institucionais. "... a justiça não pode ser observada
por um se todos não concordarem em praticá-la em conjunto; mediante
instituições que unam os empregadores uns aos outros, a fim de
evitar uma concorrência incompatível com a justiça devida aos
trabalhadores; o dever, então, dos empresários e dos patrões é
promover e manter as instituições necessárias que se tornam o meio
normal pelo qual se pode satisfazer a justiça" (DR 53).
A justiça social deve
"regular convenientemente a distribuição e o uso das
riquezas, de tal modo que não se concentre de modo excessivo nas
mãos de uns, nem esteja totalmente em falta em relação aos outros.
A riqueza é, com efeito, como sangue da comunidade humana: deve
circular normalmente entre todos os membros doa corpo social"
(Pio XII Aos bispos alemães, 18 de outubro de 1947. P. 64). Aqui
entra a competência do Estado em regulamentar a justa distribuição
dos bens da nação.
João Paulo II faz alusão à
justiça social, principalmente, 'luta pela justiça social'.
Não se trata de uma luta de 'uns contra os outros', mas de "um
empenho em prol do justo bem e, no caso, dos homens do trabalho,
associados segundo suas profissões" (LE 20, 3). E segue,
insistindo na solidariedade como meio de conquistar a justiça. A
"solidariedade pelo trabalho, que se manifesta na luta pela
justiça e pela verdade na vida social" (OIT 9).
O documento Liberdade cristã
e Libertação da Congregação para a Doutrina da Fé, fala da 'luta
nobre e razoável' que deve ser encorajada 'tendo em vista a
justiça e a solidariedade social'. Ela deve ser diferenciada da luta
de classe com a finalidade de obter a eliminação do adversário (P.
64).
A pergunta que fica é: quem
determina as múltiplas obrigações e serviços da justiça social.
"Supões-se, em seguida, que alguns membros da comunidade
recebam dela autoridade delegada para determinar de modo mais
preciso, se necessário, diversas obrigações e serviços. Acontece
que, por falta de consenso, se torna impossível chegar a uma
determinação satisfatória de tais ou tais obrigações de justiça
social... O objetivo da justiça social nem por isso deixa de
continuar diante dos olhos dos membros da sociedade, à espera de ser
reconhecido. Constitui um critério de combate pela justiça" p.
65.
VII. Espiritualidade
política
O texto que segue é fruto
da síntese livre do artigo de Clodovis Boff sobre Espiritualidade do
Militante (com enfoque pneumatolótgico) no livro: Fé e Política,
fundamentos, Pedro A. Ribeiro de Oliveira, organizador, editora,
Ideias e Letras, 2004, Aparecida, p.191-214.
1. Espiritualidade: “andar
segundo o Espírito”
São Paulo usa essa expressão
para identificar a vida espiritual (Rm 8, 5; Gl 5, 16-18). O sentido
profundo de espiritualidade é viver segundo o Espírito de Deus.
Isso diz respeito a tudo o que o seguidor de Jesus faz até mesmo as
coisas menos espirituais, como comer, beber, repousar, trabalhar e
também fazer política. A base, a essência de toda a
espiritualidade é viver a totalidade da vida segundo o Espírito de
Deus.
O Espírito de Deus é o
Espírito de Jesus, o Espírito Santo. Como foi dito é Ele quem
enviou, consagrou e ungiu Jesus. E Jesus é o modelo de alguém que
se deixou conduzir pelo Espírito de Deus. Por isso, temos em Jesus a
referência inspiradora de alguém que viveu em plenitude segundo o
Espírito. Ele através de sua palavra, de seu exemplo, de suas
promessas, de seu Reino é a luz que ilumina todo modo de ser e de
agir de seus seguidores. Numa palavra, espiritualidade é viver do
jeito de Jesus, pois Ele viveu e concretizou o Reino de Deus guiado
pela força do Espírito Santo.
E o modo de ser, de viver e de
agir de Jesus se resume numa palavra: ágape ou amor cristão. “Pois
aí está a ‘forma’ de toda a atividade do cristão, inclusive da
política. A ágape é como a alma da militância política: ele
anima, direciona e unifica toda a prática política do cristão
comprometido. Em resumo, o Espírito nos remeta a Cristo e Cristo nos
remete ao amor Agápico.
Na verdade Cristo apontou a
ágape como o “sinal de reconhecimento ou “senha’ de seus
discípulos: se vos amardes uns aos outros” ( Jo 13, 35). Não só:
o testemunho da ágape é o primeiro e fundamental apostolado do
cristão leigo. Lemos, com efeito, em outro passo: “Que todos sejam
um, a fim de que o mundo creia”(Jô 17, 21; cf. v. 23).
A política para um cristão é
uma forma da ágape: uma diaconia de libertação, um serviço de
amor. O político cristão é a seu modo um pastor do povo. Assim
também eram chamados os chefes dos povos no mundo antigo, inclusive
no mundo bíblico (cf. Ez 34; Mt 9, 36; Jo 10). p. 199.
O agapé ou amor cristão
direciona todo o jeito de militar na política. O jeito está ligado
ao como, a maneira de fazer política. É um jeito de fazer inspirado
no espírito da ágape ou da caridade cristã. Da fonte do espírito
agápico emerge duas virtudes do militante: amabilidade e discrição.
A amabilidade no sentido de
respeitar o ser humano e de cultivar a amizade para com cada pessoa,
mesmo para com o adversário político. O Vaticano II fala em
“afabilidade” (AA 4, 9). E o NT em “mansidão” (Mt 5, 5; 11,
29), em “doçura” evangélica (1 Pd 3, 16; Cl 3, 12). Isso é
mais relevante na medida em que os políticos gozam do pouca simpatia
na opinião pública. Só políticos autenticamente amáveis tornam a
política amável.
Discrição em relação à
própria confissão de fé. “Portanto, numa cultura que deprecia a
fé ou a instrumentaliza, e isso é evidente na esfera política,
deve-se seguir a consigna de Jesus: “Não jogueis vossas pérolas
aos porcos” (Mt 7, 6). Não que a confissão manifesta da fé não
possa ter lugar, apresentando-se a oportunidade. Mas o regime normal
é a ‘discrição verbal e a aposta no testemunho puro”. P. 200.
2. A espiritualidade
própria do militante em geral
A espiritualidade do militante
é a espiritualidade do cristão, pois, antes de ser militante ele é
cristão. O caminho de santificação cristão é um só: o
seguimento de Jesus Cristo. Ao falar de espiritualidade para os
leigos o Vaticano II diz que ela consiste essencialmente na prática
das três virtudes teologais, a saber, fé, esperança e caridade (AA
4).
Cada cristão a partir de sua
vida e de seu engajamento viverá as virtudes teologiais ao seu modo.
Por isso, existe e deve existir um estilo militante de viver a fé, a
esperança e a caridade. Esse estilo ‘militante de viver a
espiritualidade cristã tem três tratados: espiritualidade encarna
no mundo; espiritualidade com ênfase e espiritualidade dialética.
a) Espiritualidade
‘encarnada’ na laicidade política
Jesus assumiu a natureza
humana, menos o pecado, para redimi-la. Do mesmo modo o militante
assume a natureza política, menos o pecado nela presente, para
salvá-la. Jesus ao assumir a natureza humana percebeu a maravilhosa
presença de Deus no ser humano e os sinais de Deus na obra humana.
Assim o militante, perscruta os sinais de Deus na natureza política
e nela percebe as maravilhas de Deus, os seus apelos, e a vive a
partir do Espírito de Deus.
“A fórmula de sua
identidade espiritual é: contemplação na ação. E ao mesmo tempo,
ela contribui para ‘espiritualizar o mundo político na medida em
que vive em sintonia com o Espírito. Diz muito bem o decreto
conciliar sobre os leigos: “Os assuntos seculares não devem ser
estranhos à espiritualidade da vida cristã do leigo, segundo a
expressão do apóstolo: ‘O que quer que fizerdes, por palavra ou
ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus Cristo, dando graças a Deus
Pai por Ele’ (Cl 3, 17) (AA 4, 1).
b) Espiritualidade com
ênfase
“Há ênfases ou destaques
legítimos que dão os militantes a partir do riquíssimo universo da
espiritualidade cristã. Eles como que ‘declinam’ os ‘mistérios
cristão’ na ótica da militância. Conferem como uma ‘inflexão’
próprias às verdade da fé.
Vejamos mais concretamente
como isso se dá, ou seja, como as grandes verdades da fé podem
inspirar o militante cristão como tal. Assim, ganham em relevo
particular os seguintes passos:
- o Cristo Jesus, o profeta do
Reino, amigo pelos pobres, apaixonado pelo Pai e por sua vontade;
- o Espírito, como grande e
misterioso agente da história, e que age no coração da humanidade,
despertando toda a sorte de boas inspirações na direção de mais
justiça e paz;
- a Pessoa Humana como centro
de toda a instituição humana (o sábado foi feito para o homem);
- a Encarnação, enquanto
leva à comunhão profunda com a paixão e esperança do povo
oprimido;
- o Reino, como grande sonho
de Jesus de um mundo desalienado e confraternizado em todos os seus
níveis;
- a Cruz como preço e ao
mesmo tempo caminho de transformação pessoal e social;
- a Ressurreição, como fonte
de esperança radical, para além de todos os impasses históricos;
- a Graça, como força divina
de libertação dentro de um mundo dividido e contraditório;
- o Pecado, como realidade
particularmente evidente no campo do poder em sua tendência à
hybris, à desmedida, à prepotência; donde a advertência contínua
de Cristo à vigilância;
- É de temas como esses que o
militante deve impregnar-se em profundidade, até que se tornem nele
carne e osso, corpo e espírito”. P. 203-204.
c) Espiritualidade
dialética
É uma espiritualidade em duas
mãos. Ela nutre toda a vida, em particular a política. Porém, a
política já carrega consigo a habitação, o fermento e as energias
do Espírito.
Daí a necessidade de
reconhecer a presença e a ação do Espírito na vida política.
“Seria, contudo, ilusório
pensar que basta o envolvimento na ação para alimentar-se
espiritualmente, sob o pretexto de que ‘tudo é oração’ ou de
que ‘Deus está onde se prática a justiça e o amor’. Os
enamorados sabem que não basta lutar pela pessoa amada; importa
também se relacionar intimamente com ela. Só quem sabe ver Deus na
imediatidade consegue vê-lo nas mediações. Só quem se abre a Ele
na gratuidade pode descobri-lo na libertação. Para isso não bastam
duas a três devoções por dia. “È preciso mais que a devoção
de um dia para conhecer e possuir a riqueza de um dia” – escreve
Henry D. Thorau, o maior poeta do EUA e militante da “desobediência
civil”. P. 204.
3. Espiritualidade
específica do político cristão: espiritualidade do poder
O ponto anterior tratou do
militante cristão em geral. Aqui vamos refletir sobre o militante
político. Aquele que lida com o poder. Portanto, se trata da
espiritualidade do poder.
Quando se reflete sobre o
poder importa ser realista. Ele não é mau, mas carrega consigo
risco e perigo, pois tem a tendência em se tornar poder-dominação.
É só olhar a história passada com seus despotismos e
imperialismos. E o momento atual com os totalitarismos modernos e as
ditaduras de vários gêneros. Nem mesmo, a democracia do jeito que
está gera entusiasmo.
Os grandes filósofos
políticos, os antigos e os novos, advertem sobre o demonismo no
poder político, enquanto todo o poder tende como que naturalmente,
para o abuso, o arbítrio e a dominação. “O poder quer sempre
mais poder”, sentenciou Hobbes.
Também a apocalíptica,
judaica e cristã, descreve com uma inigualável força expressiva o
satanismo do poder sob a forma teratológica de figuras monstruosas,
como se pode ver em Daniel e no apocalipse.
Segundo S. Gregório Magno, no
campo do poder não pode haver ingenuidade. Ele teve experiência do
poder como prefeito de Roma e embaixador em Constantinopla e o fez de
modo exemplar. Diz ele que só exerce bem o poder aquele que conhece
a sua força de seduzir e de cegar: do contrário, será vítima
dele. p. 2007-208.
Em vista, de colocar freios no
poder, a democracia institui diferentes mecanismos de controle e
limitação de poder: divisão dos poderes, alternância, eleições
diretas, prestação de contas, etc.
Jesus Cristo propôs uma
concepção revolucionária de poder, o poder-serviço. É um pode
essencialmente diferente do poder-dominação. Ele é convertido,
exorcizado do demônio da prepotência que costuma fazer nele sua
habitação. Trata-se de um ‘evangelho’, uma boa-nova que deve
ser vivida como um credo, uma convicção profunda. “A idéia de
poder-serviço deve estar profundamente enraizada no coração do
cristão militante. Para ele, esse poder-serviço deve constituir um
tema permanente de meditação e uma fonte perene de inspiração.
Trata-se de um ideal que deve penetrar em todas as veias da alma e do
corpo, para daí irradiar em forma de atitudes e de comportamentos
conseqüentes”. p. 208.
O conteúdo do poder-serviço
se desdobra em três atitudes fundamentais: a) “A gratuidade, é a
despretensão ou o desinteresse com que se há de exercer o poder. É
trabalhar para o povo sem pensar em recompensas pessoais e em outros
dividendos meramente corporativos. Nada mais eloqüente desse
espírito que a parábola do ‘servo inútil’ (Lc 17, 7-10). P.
208; b) A ausência de ambição. A política é palco para a glória
e escada par a autopromoção. Relembremos que o vedetismo foi uma
das tentações de Cristo: lançar-se abaixo do pináculo do Templo,
aos olhos e com o aplauso da multidão (Mt 4, 5-7). Ao contrário, o
que vale aqui é a palavra do Mestre: ‘Quando deres esmola, não
toques a trombeta.. Que tua mão esquerda não saiba o que faz a
direita’ (Mt 6, 2-3); c) O empenho generoso em favor do outro. Esse
é o sentido evangélico do poder como serviço. É um tipo de
trabalho que: rende os talentos em favor dos outros (Mt 25, 24-30);
seja ‘amoroso’, ao modo do Bom Pastor (Jo 10); dispõe a ‘dar a
própria vida’ em benefício dos irmãos (Mc 10, 45; Jo 10, 11; Mt
16, 25). Todas essas atitudes se resumem numa virtude chamada
humildade. É uma virtude de primeira ordem na política porque é
antídoto de toda dominação. Longe da humildade, tirar o poder. Ela
o purifica, o radicaliza e o reforça na sua essência evangélica de
ser libertador.
O poder só é serviço quando
é instrumento de justiça. Ela é a qualidade principal de um
governante. O poder não tem outra finalidade a não ser instaurar a
justiça. Em outras palavras, só o direito pode legitimar a força e
nunca o contrário. Daí porque ‘fome e sede de justiça’ (Mt 5,
6), mesmo à custa das perseguições (Mt 5, 10-11) é a grande
virtude do verdadeiro político”)P. 209).
Abreviaturas:
- ONGs: Organizações não governametais.
- P: Documento de Puebla.
- DSD: Documento de Santo Domingo.
- GS: Documento do Vt. II, Gaudiun et Spes.
- LC: Documento Instrução sobre Liberdade Cristã e a Libertção.
- EN: Documento Evangelii Luntiandi.
- CIC: Catecismo da Igreja Católica.
- MM: Documento Mater et Magistra.
- SRS: Documento Sollicitudo Rei socialis.
- OA: Documento Octoagesima Advenians.
- CDSI: Compendio da doutrina Social da Igreja.
- OIT: Organização Internacional do Trabalho.
- LE: Documento Laborem Execens.
- PT: doumento Pacen in Terris.
- CA: Documento Centtessimus Annos.
- DSI: Doutrina Social da Igreja.
Texto provisório de Frei
Flávio Guerra.
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