08/12/2013

10ª etapa da Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2013.ano10

Texto: José Antônio Somensi
Fotos: Milena Leal



O que vou fazer daquilo que fizeram de mim?


Com esta provocação de etapas anteriores o professor Ms. Frei Flávio Guerra da ESTEF – Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana iniciou a décima etapa da Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2013 – décimo ano.


O tema desta última etapa de 2013 foi: “O Ensino Social da Igreja e os desafios do desenvolvimento humano, econômico, técnico e social. A dimensão da fé como inspiradora da militância cristã para a prática da justiça social, da ética, da política e da solidariedade”.


Em sua participação Frei Flávio nos trouxe que a Igreja tem a missão de anunciar e atualizar o Evangelho na complexa rede de relações sociais onde o ser humano está inserido e esta atualização se dá através de um desenvolvimento capaz de proporcionar aos seres humanos que vivem em ‘condições menos humanas’ (alimentação, saúde, educação, opressão, exploração, individualismo) conquistar ‘condições mais humanas’ (vida digna, paz, bem comum e com fé em Deus).



Vivemos numa sociedade que passa, no dizer do Documento de Aparecida, uma mudança de época que positivamente traz a busca de um sentido de vida e da transcendência, de construir o próprio destino, mas também de forma negativa marcada pela exclusão social de muitos pobres, enfermos, mulheres que vivem como supérfluos e descartáveis, a mercê do desemprego, da violência, do desamparo; de pessoas que por força de uma sociedade consumista, individualista, manipulada pelos meios de comunicação, governos dependentes de um sistema financeiro dominado pela lógica do mercado e por uma política de interesses de grandes grupos.


Diante desta realidade Frei Flávio nos traz o Ensino Social que olha para a prática de Jesus que apresenta a proposta de vida em abundância (Jo 10,10) – saúde, comida, acolhida, valorização e inclusão dos pobres na sociedade; poder como serviço colocando os talentos em favor dos outros; igualdade para todas as pessoas libertando-os dos males provocados pela sociedade e religião; solidariedade como saída para os excluídos exemplificados no bom samaritano; vida sagrada de todos os seres, pois Deus é o criador de tudo.


Frei Flávio reforça que todas as ações são políticas (partidárias e/ou participativa) e que precisamos fortalecer a Política através dos princípios éticos que o Ensino Social da Igreja nos traz. A) Bem comum que respeita e garante os direitos fundamentais de todas as pessoas, promove a paz, prioriza os pobres nas políticas públicas. B) Participação com uma educação adequada, exercício de cidadania plena com o devido cuidado na escolha dos representantes, na formação, nas ações sociais, no favorecimento da participação dos excluídos na vida da sociedade. C) Solidariedade com a partilha dos bens e serviços com os mais fracos, com os pobres, promovendo a paz social.


Torna-se necessário a partir do conhecimento que adquirimos buscar o poder como serviço e exercê-lo através da gratuidade trabalhando pelo povo, libertarmos-nos da ambição que pode nos levar ao vedetismo e empenharmos-nos em favor dos outros colocando os nossos talentos a serviço de uma sociedade de justiça e de paz, ocupando os espaços de decisão através dos vários conselhos em âmbito local, regional, municipal, estadual e nacional.


Chegamos ao final de mais um ano de Escola de Formação Fé, Política e Trabalho cuja responsabilidade está a cargo da Cáritas Caxias do Sul com apoio e parceria do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.


Hoje somos centenas que ao bebermos de águas puras podemos ajudar na construção de um mundo melhor, um outro possível.




Agradecemos os nossos bispos Alessandro e Paulo, padres, pastorais, movimentos sociais e de Igreja, organizações, sindicatos, associações, cooperativas e alunos/as (sempre) que desde o seu início em 2004 colaboraram conosco, nos apoiando, enviando inscritos/as, nos transmitindo palavras de incentivo.


Agradecemos também a todos/as que gratuitamente se dispuseram a organizar a Escola, aos assessores/as, ao IHU que acredita e incentiva a proposta da Escola e aos funcionários/as do Centro de Pastoral que dedicaram muito carinho para conosco.


Em 2014 temos o desafio de fazer acontecer a décima primeira edição da Escola de Formação Fé, Política e Trabalho e continuamos contando com todos/as.



Acessem www.fepoliticaetrabalho.blogspot.comhttp://www.fepoliticaetrabalho.blogspot.com.br/p/fe-politica-e-trabalho-2014ano11.html e www.diocesedecaxias.org.br, divulguem e indiquem pessoas para se inscrever, que possam nos ajudar a vencer os males que continuam a nos desafiar na proposta de uma sociedade mais justa.



















Escola de Formação Fé, Política e Trabalho

07/12/2013

De Medellín à Aparecida: 40 anos de igreja católica na América Latina

Filme "De Medellín à Aparecida: 40 anos de igreja católica na América Latina", documentário que mostra a trajetória da igreja católica desde que resolveu abraçar a luta pela transformação social, em Médellin, Colômbia, em 1968.

Trecho do documentário: 
http://www.youtube.com/watch?v=Y-zWT4WQmWQ

O Ensino Social da Igreja e os desafios do desenvolvimento humano, econômico, técnico. Como a fé inspira a militância cristã na prática da justiça social, da ética, da política.

O Ensino Social da Igreja e os desafios do desenvolvimento humano, econômico, técnico. Como a fé inspira a militância cristã na prática da justiça social, da ética, da política.

Flávio Guerra

Introdução.
A Igreja, com seu ensino social, tem a missão de “anunciar e atualizar o Evangelho na complexa rede de relações sociais”, isto é, da própria sociedade. O Evangelho se ocupa com todas as dimensões do ser humano para que este tenha “vida e a tenha em abundância” (Jo 10, 10). O ser humano vive em sociedade e sua “convivência social, com efeito, não raro determina a qualidade de vida e, por conseguinte, as condições em que cada homem e cada mulher se compreendam a si próprios e decidem de si mesmos e da própria vocação”. Esta é a razão pela qual a Igreja se ocupa “com tudo o que na sociedade de decide, se produz e se vive, numa palavra, à qualidade moral, autenticamente humana e humanizadora da vida social”. Por isso, “a política, a economia, o trabalho, o direito, a cultura não constituem um âmbito meramente secular e mundano e, portanto, marginal e alheio à mensagem e à economia da salvação”(CDSI, 62).
Na encíclica Populorum Progressio, Paulo VI esclarece em que consiste o verdadeiro desenvolvimento. Este tem como finalidade proporcionar a toda pessoa vida digna, isto é, passar de condições menos humanas de vida para condições mais humana de vida. O documento define quais são as condições menos humana de vida: “as carências materiais dos que são privados do mínimo vital; carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo; presença de estruturas opressivas, quer provenham do abuso da posse ou do poder: da exploração dos trabalhadores e as injustiças das transações”. Em seguida, o referido documento elenca as condições mais humanas de vida: “a passagem da miséria à posse do necessário; a vitória sobre os flagelos sociais; o alargamento dos conhecimentos; a aquisição da cultura; a consideração crescente da dignidade dos outros; a orientação para o espírito de pobreza; a cooperação no bem comum; a vontade de paz; o reconhecimento, pelo homem, dos valores supremos, e de Deus que é a origem e o termo deles, sobretudo, a fé, dom de Deus acolhido pela boa vontade do homem, e a unidade na caridade de Cristo que nos chama a todos a participar como filhos na vida de Deus vivo, Pai de todos os homens” (PP 20; 21).
Em outras palavras, pode-se afirmar que o desenvolvimento é integral na medida em que realiza todas as dimensões do ser humano. Na dimensão econômica ele requer a participação ativa e em condições de igualdade no processo econômico internacional; na dimensão social busca a evolução para sociedades instruídas e solidárias; na dimensão política empenha-se para consolidar regimes democráticos capazes de assegurar a liberdade e a paz; na dimensão religiosa promove a abertura do ser humano para a transcendência (CV 21; 29).
I. Os principais desafios do desenvolvimento humano.
Hoje o que mais afeta o modo de ser e de viver do ser humano é a realidade cultural. Ela carrega consigo aspectos positivos, mas, ao mesmo tempo, não contribui para que o ser humano possa desenvolver sua vocação humana de acordo com o desígnio de Deus.
Segundo o documento de Aparecida a humanidade passa por uma mudança de época que traz mudanças significativas no modo dos ser humano se entender. O lado bom dessas mudanças diz respeito: “’ao valor fundamental da pessoa, de sua consciência e experiência, a busca do sentido da vida e da transcendência (52); a necessidade de construir o próprio destino e o desejo de encontrar razões para a existência podem colocar em movimento o desejo de se encontrar com os outros e compartilhar o vivido como maneira de dar de si uma resposta (53); ênfase na experiência pessoal e vivencial leva a considerar o testemunho como componente chave na vivência da fé (55).
Porém, a atual cultura contém muitos elementos negativos que atingem questões fundamentais da vida das pessoas e dos cristãos, a saber: ‘Deus é excluído do horizonte das pessoas; sobrevalorização da subjetividade individual que enfraquece os vínculos comunitários e propõe uma radical transformação do tempo e do espaço,dando papel primordial à imaginação (44); ciência e tecnologia colocados exclusivamente a serviço do mercado com critérios únicos de eficiência, de rentabilidade e do funcional; os MCS,introduz na sociedade um sentido estético, uma visão a respeito da felicidade, uma percepção da realidade e até uma linguagem que quer impor-se como autêntica cultura (45); nova colonização cultural pela imposição de culturas artificiais, desprezando as culturas locais e com tendência de impor uma homogeneização de todos os setores (46); exasperada defesa dos direito individuais e subjetivos deixando em segundo plano os direitos sociais (47); a felicidade que propõe a avidez do mercado é o bem-estar econômico e da satisfação hedonista (50); a cultura de consumo afeta mais as novas gerações imprimindo nelas a lógica do individualismo pragmático e narcisista que não a impressão de um mundo de libera de e igualdade (51).
II. Os principais desafios do desenvolvimento econômico.
O desenvolvimento econômico tem como finalidade proporcionar os bens materiais e imateriais necessários para que todos possam viver bem e assim viver de forma digna. Porém, o que constatamos é que os bens da terra e os frutos do trabalho humano não são partilhados entre todos: 20% da população mundial, concentrados na parte ocidental do hemisfério Norte, detêm 80% da riqueza do planeta (Frei Beto). No Brasil, apesar dos avanços nos últimos anos, a desigualdade social ainda é acentuada. E um dado que estarrece é o escândalo da fome que atinge, segundo o IBGE, aproximadamente 11 milhões de pessoas.
Nosso povo ainda é atingido por graves problemas que amargam sua vida devido a um desenvolvimento econômico que privilegia o lucro e o consumo em detrimento da vida das pessoas e do meio ambiente.
1. Exclusão social.
Não tem como negar que, apesar da melhora das políticas públicas adotadas pelo governo federal, estadual e municipal, ainda existe uma multidão de pobres e miseráveis fruto de ‘antigas e novas pobreza’ em cujos rostos resplandece o rosto pobre e crucificado de Jesus: moradores de rua, migrantes, enfermos,dependentes de substâncias químicas, presos, mulheres explorada por questão de gênero, étnica e situação sócio-econômica, crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social. Eles já não são somente explorados, mas supérfluos e descartáveis (Diretrizes, 25).
2. Acesso ao trabalho para todos.
Um dos fenômenos da globalização econômica é o desemprego estrutural. Ele “se caracteriza pela diminuição da mão-de-obra empregada na indústria, pela fragmentação do processo produtivo e pela flexibilização das relações de trabalho” (Diretrizes 26). Essa situação gera dois graves problemas. Um diretamente ligado à organização dos trabalhadores, pois gera a desunião e desmobilização dos mesmos na luta na defesa de direitos. O outro problema diz respeito à dignidade do trabalhador, principalmente dos jovens, pois, o desemprego “destrói a dignidade pessoal, a visão de futuro, e o sentido de lealdade e solidariedade” (Diretrizes, 26).
O pior de tudo é o novo aspecto do desemprego referente “a exclusão do trabalho por muito tempo. Essa situação corrói a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual”. Por isso, o documento lembra um princípio fundamental do Ensino Social da Igreja que reza: “o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade”, pois, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida econômico-social”(CV 25).
Em vista da busca de emprego e melhores condições de vida assistimos grande mobilidade humana (Diretrizes, 31). As conseqüências desse fenômeno se fazem sentir no inchaço das periferias das cidades numa situação de vida indigna; na perda da identidade cultural; na desestruturação da família. “Quando se torna endêmica a incerteza sobre as condições de trabalho, resultante dos processos de mobilidade e desregulamentação, geram-se formas de instabilidade psicológica, com dificuldade a construir percursos coerentes na própria vida, incluindo o percurso rumo ao matrimônio. Consequência disso é o aparecimento de situações de degradação humana, além de desperdício de força social” (CV 25).
Pelo fato da economia e a vontade política não proporcionar trabalho para todos surge o trabalho informal. Calcula-se que quase a metade da população economicamente ativa vive do trabalho informal. Este “se vê submetido à precariedade das condições de emprego e à pressão constante da subordinação, que traz consigo salários mais baixos e falta de proteção na área de seguridade social, não permitindo a muitos o desenvolvimento de uma vida digna”(DA 71).
3. Domínio do poder econômico sobre o poder político.
O poder econômico das instituições financeiras e das grandes empresas nacionais e internacionais impõe suas decisões aos Estados. A estes cabe administrar essas decisões. Diante dessa situação os Estados não conseguem ”levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações” (diretrizes, 28). E, por outro lado, esses grandes grupos econômicos, “impondo suas decisões e substituindo as instâncias políticas, com riscos para a democracia. Certamente, houve desencanto e diminuição da confiança do povo nos políticos, nas instituições públicas e nos três poderes do Estado” (Diretrizes,33).
Na nova conjuntura econômica o Estado está subordinado ao poder econômico internacional. “Atualmente o Estado encontra-se na situação de ter de enfrentar as limitações que lhes são impostas à sua soberania pelo novo contexto econômico comercial e financeiro internacional, caracterizado nomeadamente por uma crescente mobilidade dos capitais financeiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este novo contexto alterou o poder político do Estado” (CV 24).
A lógica econômica que predomina na política do governo insiste, sob pretexto de evitar a inflação, em elevar os juros para favorecer o mercado financeiro e não os consumidores. Basta dizer que governo federal gastou em 2008, com a dívida pública, 30,57% do orçamento da União para irrigar a especulação financeira. E apenas 11,73% do orçamento com saúde (4,81%), educação (2,57%), assistência social (3,08%), habitação (0,02%), segurança pública (0,59%), organização agrária (0,27%), saneamento (0,05%), urbanismo (0,12%), cultura (0,06%) e gestão ambiental (0,16%).Quem mais paga impostos são os pobres. Os 10% mais pobres da população destinam 32,8% de sua escassa renda ao pagamento de tributos, enquanto os 10% mais ricos, que dispõem de mecanismos de isenção tributária, apenas 22,7% da renda.O ciclo da moderna economia política fecha-se num mundo auto-suficiente, indiferente a qualquer consideração ética sobre a vida humana e a preservação da natureza. Os fatos históricos e a miséria em que vive grande parte da humanidade – 2/3 da população mundial sobrevivem abaixo da linha da pobreza, segundo a ONU -, põem em questão o rigor e a seriedade dessa ciência e a bondade das políticas econômicas voltadas mais ao crescimento e à acumulação da riqueza do que ao verdadeiro desenvolvimento sustentável. A ONU informa que, em 2009, foram investidos US$ 18 trilhões para socorrer bancos e empresas ameaçados de quebra devido às dificuldades econômicas e financeiras. De onde surgiu esta imensa quantia de dinheiro? A pergunta é pertinente, pois até então se dizia não haver recursos para garantir os direitos básicos das pessoas nem para a superação da miséria e da fome. Nos últimos 49 anos, a ajuda dos países ricos às nações em desenvolvimento foi de apenas US$ 2 trilhões! Uma mísera esmola ao longo de quase meio século!A crise financeira comprovou que, por si só, o mercado é incapaz de reduzir o índice de exclusão social e assegurar a prosperidade coletiva. Nem é este o seu objetivo. (Frei Beto).
4. Crescimento da violência.
A violência faz parte do dia-a-dia da vida das pessoas. A maioria das pessoas vive na insegurança. A violência degrada quem a pratica. E fere a dignidade humana de quem é vítima dela. Ao mesmo tempo, rompe o tecido social da harmonia e da convivência pacífica. A violência banaliza a vida, manifestada em roubos, assaltos, sequestros e assassinatos. A violência se reveste de várias formas e tem diversos agentes: o crime organizado e o narcotráfico, grupos paramilitares, violência generalizada, tanto na periferia das grandes cidades como no campo, violência de grupos juvenis e crescente violência intra-familiar” (Diretrizes, 35).
As causas da violência são múltiplas, mas podem ser reduzidas numa, a saber, “a ausência de Deus no coração das pessoas”(diretrizes, 35). A vida sem Deus faz o pecado germinar no coração das pessoas e no coração da sociedade organizada. Por isso, a árvore da sociedade está carregada de maus frutos: “a exclusão, a idolatria do dinheiro, o avanço da ideologia individualista e utilitarista, a falta de respeito pela dignidade de cada pessoa, a deteriorização do tecido social, a corrupção na esfera publica dos três poderes e também no setor privado, as ramificações com organizações internacionais do tráfico de drogas, armas, pessoas, paraísos fiscais e lavagem de dinheiro” (Diretrizes, 35).
5. As populações rurais desassistidas.
Boa parte das populações rurais não consegue realizar sua dignidade humana. Elas “sofrem as consequências da pobreza, agravada pela falta de acesso à terra própria, de financiamento adequado, de condições gerais de vida digna e de apoio à agricultura familiar. A reforma agrária continua sendo uma exigência diante da escandalosa concentração de terra nas mãos de poucas pessoas e grupos econômicos e da violência do campo” (Diretrizes, 29; DA 723).
O responsável pela atual situação dos trabalhadores do campo é “modelo de desenvolvimento econômico capitalista-consumista, que privilegia o mercado financeiro e o agronegócio. Isso leva a expansão da pecuária extensiva e das monoculturas de soja, eucalipto, cana-de-açúcar, assim como a projetos como do biocombustível, em detrimento da agricultura familiar, da reforma agrária e de projetos populares como a construções de cisternas, por exemplo, no semi-árido do país” (Diretrizes, 37)
6. Degradação do Planeta Terra.
O Planeta Terra no Brasil está sendo agredido de diversas formas: a biodiversidade que é alvo de cobiça internacional está sendo destruída e muitas espécies correm o risco de serem extintas; o acervo de conhecimentos tradicionais sobre a utilização dos recursos naturais é objeto de apropriação intelectual ilícita por parte de indústrias farmacêuticas e de biogenética; o aquecimento global; o exauri mento dos recursos naturais; a natureza, a terra e a água são tratadas como mercadorias negociáveis disputadas pelas grandes potências (Diretrizes, 37).
Esse modo violento de lidar com o Planeta Terra se origina do “modelo de desenvolvimento econômico capitalista-consumista, que privilegia o mercado financeiro e o agronegócio. Isso leva a expansão da pecuária extensiva e das monoculturas de soja, eucalipto, cana-de-açúcar, assim como a projetos do biocombustível, em detrimento da agricultura familiar, da reforma agrária e de projetos populares como a construções de cisternas, por exemplo, no semi-árido do país” (Diretrizes, 37).
A preservação da natureza sofre devido às ações das indústrias extrativistas internacionais e da agroindústria. Estas com “muita frequência subordina a preservação da natureza ao desenvolvimento econômico, com danos à biodiversidade, com esgotamento das reservas de água e de outros recursos naturais, com a contaminação do ar e a mudança climática”. Além disso, a região “se vê afetada pelo aquecimento da terra e mudança climática provocada principalmente pelo estilo de vida não sustentável dos países industrializados” (66) (Diretrizes, 28).
O documento de Aparecida é contundente em apontar as causas “da exploração irracional que vai deixando um rastro de dilapidação, inclusive de morte por toda a nossa região”. Em tudo isso, “tem enorme responsabilidade o atual modelo econômico, que privilegia o desmedido fã pela riqueza, acima da vida das pessoas e dos povos e do respeito racional pela natureza. A devastação de nossas florestas e da biodiversidade mediante uma atitude predatória e egoísta, envolve a responsabilidade moral dos que a promovem, porque coloca em perigo a vida de milhões de pessoas, em especial do hábitat dos camponeses e indígenas, que são expulsos para as terras improdutivas e para as grandes cidades para viverem amontoados nos cinturões de miséria”(473). Em seguida, o texto denuncia “uma industrialização selvagem e descontrolada” que tanto no campo quanto na cidade contamina “o ambiente com todo tipo de dejetos orgânicos e químicos”. A mesma situação acontece com as indústrias extrativas. É necessário “controlar e neutralizar seus efeitos danosos sobre o ambiente circundante”, pois “produzem a eliminação das florestas, a contaminação da água e transformam as regiões exploradas em imensos desertos” (473).
7. Ecletismo e homogeneização cultural
No plano cultural, antes, as culturas eram bastante bem definidas e, por isso, podiam defender-se da homogeneização cultural. Hoje, cresce notavelmente a possibilidade de interação cultural através do diálogo intercultural. Este será eficaz na medida em que os interlocutores mantenham sua específica identidade. Se isso não acontece corre-se o perigo do ecletismo cultural, isto é, colocar lado a lado as diversas culturas considerando-as substancialmente equivalentes e intercambiáveis, muitas vezes, sem realizar um autêntico discernimento (26).
No plano social, pode-se cair no relativismo cultural onde grupos culturais se juntem e convivem, mas separados e sem um verdadeiro diálogo que leve a uma verdadeira integração. Por outro lado, pode surgir o perigo oposto no sentido de nivelamento ou de homogeneização cultural de comportamentos e estilos de vida. Com isso, perde-se o significado profundo da cultura das diversas nações, das tradições de diversos povos em cuja esfera a pessoa se confrontava com questões fundamentais da vida (26).
Tanto o ecletismo quanto o nivelamento cultural conseguem, no fundo, separar a cultura da natureza humana. “assim, as culturas deixam de saber encontrar a sua medida numa natureza que a transcende,acabando por reduzir o homem a simples dado cultura. Quando isso acontece, a humanidade corre novos perigos de servidão e manipulação” (26).
III. Os desafios do desenvolvimento técnico segundo a Cartas in Veritate.
A reflexão sobre o desenvolvimento dos povos e a técnica faz sentido na medida em “ que o problema do desenvolvimento está estritamente unido ao progresso tecnológico, com suas deslumbrantes aplicações no campo biológico”. Em seguida, define a técnica como “um dado profundamente humano, ligado a autonomia e a liberdade do homem”. Ela “permite dominar a matéria, reduzir os riscos, poupar fadigas, melhorar as condições de vida”. Ela é “considerada como obra do gênio humano, o homem reconhece-se a si mesmo e realiza a própria humanidade”. “A técnica é o aspecto objetivo do agir humano cuja origem e razão de ser estão no elemento subjetivo: o homem que atua”. Nesse sentido, ela “manifesta o homem e suas aspirações ao desenvolvimento, exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos condicionamentos materiais. Assim a técnica insere-se no mandato de ‘cultivar e guardar a terra’ (Gn 2, 15) que Deus confiou ao homem, e há de ser orientado para reforçar aquela aliança entre o ser humano e o ambiente em que se deva refletir o amor criador de Deus” (69).
1. Mentalidade tecnicista.
O documento preocupa-se na possibilidade do desenvolvimento tecnológico deixar-se ‘induzir’ pela “idéia de auto-suficiência da própria técnica”. Isso acontece quando o ser humano interroga-se “apenas sobre o como” e esquece “de considerar os muitos porquês pelos quais é impelido a agir”. Por isso, “a técnica apresenta-se com uma fisionomia ambígua”. De um lado, ela expressa a “criatividade humana como instrumento de liberdade da pessoa”. E de outro, ela “pode ser entendida como elemento de liberdade absoluta”, isto é, “que prescinde dos limites que as coisas tragam consigo”. Nesse caso, entra o processo de globalização. Este “poderia substituir as ideologias com a técnica, passando esta a ser um poder ideológico que exporia a humanidade ao risco de ser ver fechada dentro de um a priori do qual não poderia sair para encontrar o ser e a verdade”. Numa palavra, o ser humano busca em si mesmo o sentido de tudo o que acontece em sua vida. É uma ‘visão muito forte hoje’, denominada “mentalidade tecnicista” na qual “o único critério de verdade é a eficiência e a utilidade”. Nesse sentido, se tem uma concepção de desenvolvimento voltada exclusivamente no fazer. Porém, “a chave do desenvolvimento é uma inteligência capaz de pensar a técnica e de individualizar o sentido plenamente humano do agir do homem, no horizonte de sentido da pessoa vista na globalidade de seu ser. Mesmo quando atua mediante um satélite ou um comando eletrônico à distância, o seu agir continua sempre humano, expressão de uma liberdade responsável”. Esta o é verdadeira na medida em que seja “fruto de responsabilidade moral. Daí a necessidade de uma urgente “formação para a responsabilidade ética no uso da técnica” (70).
2. Tecnização da economia.
A possibilidade da “mentalidade tecnicista” acontece “nos fenômeno da tecnização do desenvolvimento e da paz. Aquele é “considerado um problema de engenharia financeira, de abertura dos mercados, da redução das tarifas aduaneiras , de investimentos produtivos, de reformas institucionais”. Tudo isso é necessário. No entanto, “as opções do tipo técnico tenham resultado apenas de modo relativo” porque o “desenvolvimento não será jamais garantido completamente por forças de certo modo automático e impessoais, seja elas as do mercado ou as da política internacional”. A razão de tudo isso, está no fato de que o desenvolvimento só é possível com “homens retos”, isto é, “operadores econômicos e homens políticos que sintam intensamente em suas consciências o apelo do bem comum”. Caso contrário, “verifica-se uma confusão entre fins e meios: como único critério de ação, o empresário considerará o máximo lucro da produção; o político, a consolidação do poder; o cientista, o resultado de suas descobertas”. O resultado disso, é prática da injustiça e o uso dos conhecimentos técnicos “em benefício dos seus proprietário, enquanto a situação real das populações que vivem sob tais influxos, e quase sempre na sua ignorância, permanece imutável e sem efetivas possibilidade de emancipação” (71).
3. Os meios de comunicação social a serviço dos interesses econômicos e políticos.
No âmbito do desenvolvimento tecnológico encontramos os meios de comunicação social. È “quase impossível imaginar a existência da família humana sem eles”. O documento contesta a visão daqueles que reivindicam a neutralidade deles que tem como “conseqüência a sua autonomia relativamente à moral que diria respeito às pessoas”. Essa postura é denomina de “verdadeiramente absurda”. Os meios de comunicação social muita vezes enfatizam sua natureza estritamente técnica’. Eles ficam subordinados “a cálculos econômicos, no intuito de dominar os mercados e, não último, ao desejo de poder ideológico e político”. Além disso, condicionam “o modo de ler e conhecer a realidade e a própria pessoa humana”. Por isso, “torna-se necessário uma atenta reflexão sobre sua influência principalmente na dimensão ético-cultural da globalização e do desenvolvimento dos povos”. Aí reside seu sentido e sua finalidade: “tornar-se ocasião de humanização, não só quando (...) oferecem maiores possibilidade de comunicação e de informação, mas também e sobretudo quando são organizados e orientados à luz de uma imagem da pessoa e do bem comum que traduza os valores universais”. Desse modo, os meios de comunicação social estariam “centrados na promoção da dignidade das pessoas e dos povos, animados expressamente pela caridade e colocados ao serviço da verdade, do bem e da fraternidade natural e sobrenatural”. Essa seria sua contribuição ao verdadeiro desenvolvimento dos povos. (72).
4. O absolutismo da técnica na manipulação da vida.
Outro campo onde entra em jogo o absolutismo da técnica é o da bioética. Aí está em jogo a “própria possibilidade de um desenvolvimento humano integral”. O que mesmo está em jogo é “saber se o homem se produziu por si mesmo ou depende de Deus”. Em vista do avanço da intervenção da técnica o ser humano se encontra diante de duas concepções: “a da razão aberta a transcendência ou da razão fechada na imanência”. A postura da Igreja é a de que “a razão sem fé está destinada a perder-se na ilusão da própria onipotência, enquanto a fé sem a razão corre o risco do alheamento da vida concreta das pessoas”(74).
Mais do que nunca a questão social “tornou-se radicalmente antropológica, enquanto toca o próprio modo não só de conceber, mas também de manipular a vida, colocando-a cada vez mais nas mãos do homem pelas biotecnologias”. Aqui entra a “fecundação in vitro, a pesquisa sobre embriões, a possibilidade da clonagem e hibridação humana”. Nesse campo o ser humano acha que já desvendou todos os “mistérios porque já chegou à raiz da vida”.
Além disso, estamos diante de “novos e poderosos instrumentos que a cultura da morte tem à sua disposição”: ‘a chaga do aborto; “uma sistemática planificação eugenética dos nascimentos; “a mens eutanásia”. O que está em causa nisso tudo é uma cultura negacionista da dignidade humana, isto é, “uma concepção material e mecanicista da vida humana”. Quais são os efeitos de tal mentalidade sobre o desenvolvimento? Essa mentalidade de indiferença no que diz respeito ao que é humano e com aquilo que não é humano levam a muitos a se escandalizar por coisas marginais e a tolerar injustiças inauditas. “Enquanto os pobres do mundo batem às portas da opulência, o mundo rico corre o risco de deixar de ouvir tais apelos à sua porta por causa de uma consciência já incapaz de reconhecer o humano”(75).
5. A redução do ser humano a sua dimensão psíquica e neurológica.
O espírito tecnicista também se faz presente quando “considera os problemas e as emoções ligados à vida interior somente do ponto de vista psicológico, chegando-se mesmo ao reducionismo neurológico”. Esta visão, muitas vezes, reduz o eu ao psíquico, e a saúde da alma é confundida com o bem-estar emotivo”. “Na base, estas reduções tem uma profunda incompreensão da vida espiritual e levam-nos a ignorar que o desenvolvimento do homem e dos povos depende verdadeiramente também da solução dos problemas de caráter espiritual”. Isto implica conceber o ser humano como um “ser uno”, composto de alma e corpo, nascido do amor criador de Deus e destinado a viver eternamente”. O desenvolvimento humano acontece quando o ser humano: “cresce no espírito; “sua alma se conhece a si mesma e apreende as verdades que Deus nela imprimiu em gérmen”; “dialoga consigo mesmo e com seu Criador”. Os fenômenos da alienação social e psicológica e as inúmeras neuroses presentes nas sociedades opulentas tem também causas de ordem espiritual. O mesmo acontece em relação a escravidão da droga e o desespero que se abate em tantas pessoas. “O vazio em que alma se sente abandonada, embora no meio de tantas terapias para o corpo e para o psíquico, gera sofrimento. Não há desenvolvimento pleno nem bem comum universal sem o bem espiritual e moral das pessoas, consideradas na sua totalidade de alma e corpo” (76).
O absolutismo da técnica cega os olhos da mente e do coração para perceber aquilo que não se explica meramente pela matéria. “Todo o nosso conhecimento, mesmo o mais simples, é sempre algo que está além do dado empírico”. Em tudo, há sempre algo a mais a ser considerado. “Em cada conhecimento e em cada ato de amor, a alma do homem experimenta um ‘extra’ que se assemelha muito a um dom recebido, a uma altura para a qual nos sentimos atraídos”. O mesmo se diz em relação ao desenvolvimento. Nele há “um ‘mais além’ que a técnica não pode dar”. Esse algo mais só a “força propulsora da caridade na verdade pode oferecer”(77).
IV. Valores evangélicos irrenunciáveis na construção do desenvolvimento humano, econômico e técnico a serviço do bem comum.
Para os cristãos Jesus é modelo de pessoa humana plena. Pela sua vida, Ele provou que o ser humano tem condições de viver a sua missão na terra segundo o desígnio original de Deus a seu respeito. Este tem por finalidade a comunhão plena do ser humano com seu Criador, com o outro como irmão e com a natureza com irmã (Gen 1, 1-29).
Vivemos momento histórico em que a vida em todas as suas formas ‘geme em dores de parto’. Em nome do deus dinheiro e do deus lucro, a maior parte de humanidade é excluída dos seus direitos fundamentais. Em nome do deus poder-dominação(econômico e político corruptos) as políticas públicas não conseguem dar conta dos direitos sociais da maioria das pessoas. Em nome do deus consumo a natureza se contorce sufocada pelo seu uso indiscriminado e indevido. Em nome do deus egoísmo cada pessoa busca salvar a sua própria pele, e não se dá conta que cava a sua própria sepultura e contribui na destruição de sua irmã e mãe terra. Em nome do deus da técnica, os detentores do poder econômico tem a ilusão de tornarem-se deuses e, por isso, de um lado, quererem manipular a vida segundo seu bel prazer e, de outro lado, resolverem todos os problemas do ser humano.
Jesus vive e prega o Reino de Deus que é vida em abundância para todos (Jo 10, 10). O conteúdo essencial do Reino de Deus é o amor a Deus e o amor ao próximo (Mt 22, 34-40; Lc 10, 25-28; Jo 13, 34; 15, 21). O amor ao próximo, nas relações sociais, se concretiza na prática da justiça social: os direitos dos pobres e excluídos são concretizados; a dignidade das pessoas é respeitada e a organização social é estruturada em vista do bem comum, isto é, da realização dos direitos fundamentais de todos.
Para que o Reino de Deus penetre e transforme mais profundamente a dimensão pessoal e social do ser humano é necessário viver e anunciar seus principais valores.
A vida como valor maior. “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Essa afirmação resume o sentido da missão de Jesus que é a de construir o Reino de Deus na história da humanidade. Segundo a vida e a prática de Jesus ‘vida em abundância’ é saúde (os doentes são curados); comida (a partilha do pão), acolhida, valorização e inclusão dos excluídos na sociedade e na comunidade(o pecador, a mulher, o estrangeiro, a criança, o cobrador de impostos...); relação sadia com os outros(amor gratuito e reconciliador e solidário) e com Deus(Pai e Mãe amoroso e misericordioso e disposição da pessoa em colaborar com o plano de Deus) e com o Planeta Terra(respeito e cuidado com todos os seres criados).
Ilustrativo sobre o valor, em primeiro lugar, da vida é o conflito entre Jesus e os fariseus sobre a lei absoluta do sábado (Mc 23. 3, 6). Na sua reflexão Jesus afirma que o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado. Jesus, com essa compreensão sobre a lei do sábado, livra o ser humano da ‘alienação legal’. Toda e qualquer lei, religiosa, política e econômica é legítima se estiver a serviço da vida do ser humano e de todos os seres criados.
O poder como serviço em vista da realização da justiça. Poder serviço é o empenho generoso em favor do outro. É o jeito de viver o poder em que coloca os talentos em favor dos outros (Mt 25, 24-30); que se dispõe a dar a vida em favor dos outros (Mc 10, 45; Jo 10, 11). Isto acontece através da promoção da justiça. Ela é a razão principal do exercício do poder serviço. Por isso, um governante só é legítimo, na medida em que pratica a justiça em favor de todos. Ele é bem-aventurado porque tem ‘fome e sede’ de justiça (Mt 5, 6), mesmo à custa das perseguições(Mt 5, 10-11).
Igualdade fundamental de todas as pessoas. Jesus veio com a missão realizar o plano original de Deus para toda a criação. Deus é criador e pai de todos os seres humanos. Por isso todos tem a mesma dignidade e os mesmo direitos e deveres. Ao mesmo tempo, todos são irmãos. Todos foram criados a imagem e semelhança de Deus e com a mesma finalidade de comungar com seu criador e com seus irmãos. Pela entrada do pecado no mundo todos ficaram marcados com o poder do mal. Jesus veio libertar todas as pessoas dos males pessoais, sociais e espirituais. Ninguém é excluído da salvação realizada por Jesus Cristo. Por isso, a igualdade fundamental de todas as pessoas nasce da ação criadora de Deus e prática salvadora de Jesus.
A desigualdade é criação humana. Ela é fruto de uma determinada organização social. Por isso, ela é contrária ao projeto do Reino de Deus, vivido e pregado por Jesus. Neste não tem espaço nem lugar para a discriminação.
A solidariedade como saída para os excluídos. A solidariedade é o caminho para concretizar a igualdade. O bom samaritano é símbolo de solidariedade. Ela é o novo nome do amor ao próximo (Lc 10, 25-37). A parábola define o jeito de amar de Deus e de seu Filho Jesus: ir ao encontro do necessitado, seja pessoa ou grupo, resultado de uma sociedade injusta ou de uma circunstância da vida; acolher, valorizar e dar uma solução satisfatória. A solidariedade com os excluídos com gestos concretos de promoção humana é critério indispensável para fazer parte do Reino (Mt 25, 31-46).
A vida ‘sagrada’ de todos os seres criados.
A fé cristã afirma que Deus é o criador de tudo. Com a entrada da maldade no mundo a criação também ficou prejudicada. A ressurreição de Jesus trouxe a reconciliação de todos os seres terrestres e celestes. Jesus inaugura um ‘novo céu e uma nova terra’ onde se realiza a fraternidade universal ( irmão sol, irmã e mãe terra, irmão lobo... – S. Francisco de Assis) de todos os seres criados. O Planeta Terra forma a ‘família de Deus’. Nela um depende do outro para sobreviver. Tudo está ligado, conectado pelo mistério divino da vida criada por Deus. Daí a necessidade de criar a consciência de que o ser humano é parte integrante do Planeta Terra. Ele é um nó inteligente na rede do mistério da vida nas suas mais variadas formas que fazem parte do Planeta Terra. Portanto, o ser humano depende totalmente dos outros nós, sem os quais ele não consegue viver.
V. A presença de estruturas de pecado na lógica econômica.
A globalização entendida como “fenômeno de relações de nível planetário” é “uma conquista da família humana” e “favorece o acesso a novas tecnologias, mercados e finanças”. Isso possibilitou “altas taxas de crescimento” da economia regional e, “particularmente seu desenvolvimento urbano”. Por outro lado, a “globalização comporta o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro em valor supremo. Daí a necessidade dela ser regida “pela ética, colocando tudo a serviço da pessoa humana, criada a imagem e semelhança de Deus” (60). Além disso, a globalização comete quatro pecados: a) Celebra “freqüentes Tratados de Livre comércio entre países com economias assimétricas, que nem sempre beneficiam os países mais pobres”; b) Pressiona “os países da região com exigências desmedidas em matérias de propriedade intelectual, a tal ponto que se permitem direitos de patentes sobre a vida em todas as formas”; c) A “utilização de organismos geneticamente manipulados tem mostrado que nem sempre a globalização contribui para o combate contra a fome, nem para o desenvolvimento rural sustentável” (67); e) Promove surgimento de novos rostos de pobres e excluídos: “os migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e seqüestros, os desparecidos, os enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os tóxicos-dependentes, idosos, meninos e meninas que são vítimas da prostituição, pornografia de violência ou do trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas da exclusão e do tráfico para a exploração sexual, pessoa com capacidades diferentes, grandes grupos desenpregados/as, os excluídos pelo analfabetismo tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes cidades, os indígenas e afro-americanos, os agricultores sem terra e os mineiros (402).
João Paulo II teve a clarividência, na encíclica Solicitude Social, de perceber a lógica que move o desenvolvimento econômico denominado capitalista. “É necessário denunciar a existência de mecanismos econômicos, financeiros e sociais que, embora conduzidos por vontade dos homens, funcionam muitas vezes de maneira automática, tornando mais rígidas as situações de riqueza de uns e da pobreza de outros. Estes mecanismos, manobrados – de maneira direta ou indireta – pelos países desenvolvidos, com seu próprio funcionamento favorecem os interesses de quem os manobra, mas acabam por sufocar ou condicionar as economias dos países menos desenvolvidos” (SRS 16).
O documento olha do ponto de vista teológico o funcionamento dos mecanismos econômicos, financeiros e sociais e observa “que entre as nações e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo e as ‘estruturas’ a que elas induzem, as mais características hoje parecem ser sobretudo duas: por um lado, há avidez exclusiva de lucro; e, por outro lado, a sede de poder, com o objetivo de impor aos outros a própria vontade. A cada um destes comportamentos pode juntar-se, para os caracterizar melhor, a expressão: ‘a qualquer preço’. Em outras palavras, estamos diante da absolutização dos comportamentos humanos, com todas as consequências possíveis”(SRS 37).
Esse tipo de comportamento social da parte dos detentores do poder econômico, fruto do pecado, prejudica não somente os indivíduos, mas também as nações. E pode-se dizer que configuram ‘estruturas de pecado’, isto é, o “conjunto dos fatores negativos, que agem no sentido contrário a uma verdadeira consciência do bem comum universal e á exigência de o favorecer, dá a impressão de criar, nas pessoas e nas instituições, um obstáculo difícil de superar” (SRS 36). Do ponto de vista moral, “por detrás de certas decisões, aparentemente inspiradas só pela economia e pela política, se escondem verdadeiras formas de idolatria: do dinheiro, da ideologia, da classe e da tecnologia” (SRS 37).
O remédio moral e social para superar as denominadas estruturas de pecado é a virtude da solidariedade assim entendida: “não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos”. Esta determinação está fundada na firme convicção de que as causas que entravam o desenvolvimento integral são aquela avidez do lucro e aquela sede de poder de que se falou acima. Estas atitudes e estas ‘estruturas de pecado’ só poderão ser vencidas – pressupondo o auxílio da graça divina – com uma atitude diametralmente oposta: a aplicação em prol do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, para ‘perder-se’ em benefício do próximo em vez de o explorar, e para ‘servi-lo’ em vez de o oprimir para proveito próprio “(Mt 10, 40-42; 20, 25; Mc 10, 42-45; Lc 22, 25-27).
O mesmo critério aplica-se, por analogia, nas relações internacionais. A interdependência deve transformar-se em solidariedade, fundada sobre o princípio de que os bens da criação são destinados a todos; aquilo que a indústria humana produz, com a transformação das matérias-primas e com a contribuição do trabalho, deve servir igualmente para todos”(SRS 39).
VI. A fé inspira a militância cristã na prática política.
  1. A prática política de Jesus.
O modo de ser e de agir de Jesus concretizou de forma plena o modo de ser e de agir de Deus no meio de seu povo. Toda a missão de Jesus foi no sentido de libertar o povo de Deus de todos os males que o afligiam. Jesus recebeu de seu Pai a missão de proporcionar vida em abundância para todos (Jo 10, 10). Nela os pobres são privilegiados (Lc 4, 14-21). A vida em abundância tem uma dimensão pessoal que inclui a fé e a conversão (exige partilha de bens: caso de Zaqueu) ao Evangelho (Mc 1, 15) e uma dimensão político-social que liberta da doença, da fome e da exclusão social (Lc 4, 1ss; 6, 20-26; Mt 25, 41ss). Na dimensão social entra também a denúncia profética de Jesus contra a lei religiosa que não leva em conta a justiça e a misericórdia (Mt 23, 23); contra o poder usado para dominar e explorar (Mc 10, 41-45); contra os ricos que excluem Deus e o próximo de seu programa de vida pessoal e social (Mt 19, 23; 13, 22; Lc 16, 19-31).
Jesus por amor a humanidade se despojou de todo poder e glória divina para se tornar igual a nós em tudo, menos no pecado. Ele quis se colocar a serviço de todos: "Eu vim para servir e não para ser servido" (Mc 10, 45). Na perspectiva do Reino de Deus vivido, pregado e construído por Jesus poder é serviço pelo bem pessoal e social (Mc 10, 32-45). Ele vem de Deus (Jo 19, 11). E segundo a prática de Jesus o poder só tem sentido se exercitado a partir do conteúdo essencial do Reino de Deus, o amor a Deus e o amor ao próximo. O gesto, por excelência, de Jesus é o lava-pés, símbolo de serviço (Jo 13, 12-17). Nele fica evidente que toda e qualquer ação dirigida ao outro é conforme a vontade de Deus se for para tornar sua condição de vida mais humana. Nessa perspectiva, o poder só é legitimo se colabora na comunhão das pessoas com Deus e das pessoas entre si em nível local e internacional.
A atitude de Jesus diante da alternativa de pagar ou não tributo a César (Mt 12, 13-17) esclarece a tipo de relação que os seguidores Dele devem ter diante do Estado. O que significa dar a Deus o que é de Deus. E dar a César o que é de César? Significa que Jesus dessacraliza o poder político que era divinizado. Ao mesmo tempo, reconhece sua legítima autonomia, estabelecendo uma dualidade (não dualismo) entre a instância religiosa e a instância política. Afirmar a necessidade do poder na estrutura de uma sociedade, como algo que vem de Deus, como declarou a Pilatos: Não terias poder sobre mim se não te houvesse sido dado do alto” (CNBB 40, 205).
2. A prática política da Igreja.
A ação da Igreja em relação à política é pautada pela fé na pessoa de Jesus Cristo. Ele evangelizou, isto é, trouxe a boa notícia da salvação de Deus para a vida pessoal e social do ser humano. Por isso: “A fé não despreza a atividade política; pelo contrário, a valoriza e a tem em alta estima. A Igreja, falando ainda em geral, sem distinguir o papel que compete aos seus diversos membros – sente como seu dever e direito estar presente nesse campo da realidade porque o cristianismo deve evangelizar a totalidade da existência humana, inclusive a dimensão política. Por isso, ela critica aqueles que tendem a reduzir o espaço da fé à vida pessoal e familiar, excluindo a ordem profissional, econômica, social e política, como se o pecado, o amor, a oração e o perdão não tivessem importância aí” (P 514-515).
A Igreja usa dois sentidos para a palavra política. O primeiro, diz respeito a toda e qualquer ação que vise o bem comum. Nesse sentido, o papel da Igreja consiste em precisar os valores fundamentais de toda a comunidade humana – a solidariedade, a subsidiariedade e a participação. Viver e praticar a política no sentido de realizar o bem comum significa para a Igreja uma forma de dar culto ao único Deus vivo e verdadeiro (CNBB, 38, 103; Puebla 521). Esse jeito de fazer política inclui todo batizado independentemente da função que exerce na Igreja. É bom salientar que esse modo de praticar a política acontece, principalmente, de um jeito organizado e coletivo. Os principais meios são as Pastorais Sociais, as Comunidades Eclesiais de Base, os movimentos sociais, os Conselhos Paritários, as ONGs, os sindicatos, etc.
O segundo sentido da palavra política para a Igreja é o exercício do poder e da prática da política partidária. Ela é um meio privilegiado de se construir o bem comum. Isso acontece através “dos grupos de cidadãos que se propõem conseguir e exercer o poder político para resolver as questões econômicas, políticas e sociais, segundo seus próprios critérios ou ideologias" (CNBB 38, 103; Puebla 524). A Igreja delega aos leigos a missão de agir na política partidária. “A política partidarista é o campo próprio dos leigos (GS 43). Corresponde a sua condição leiga constituir e organizar partidos políticos, com ideologia e estratégia adequada para alcançar seus legítimos fins. O leigo encontra na doutrina social da Igreja os critérios adequados, à luz da visão cristã do homem. Por outro lado, a hierarquia lhe garantirá sua solidariedade, favorecendo sua formação e sua vida espiritual e estimulando-o em sua criatividade para que procure opções cada vez mais conformes com o bem comum e as necessidades dos mais fracos” (P. 524-525).
Uma coisa é certa para a Igreja: os cristãos não podem ficar de braços cruzados diante da tarefa de construir uma sociedade mais justa e solidária através da política nos dois sentidos citados acima. “Evitar que os leigos reduzam sua ação no âmbito intra-eclesial, impulsionando-os a penetrar os ambientes sócio-culturais e serem eles os protagonistas da transformação da sociedade à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja” (DSD 98).


3. Participação: princípio da prática política do cristão.
A participação é outro princípio ético-social que orienta a reflexão e o comportamento político-social de todos os membros da Igreja na construção de uma sociedade justa e solidária. Ele é definido como "o envolvimento voluntário e generoso da pessoa nas relações sociais. É necessário que todos participem, cada um conforme o lugar que ocupa e o papel que desempenha, na promoção do bem comum. Este dever é inerente à dignidade da pessoa humana" (CIC 1913). E tem como consequência a realização da justiça social, condição indispensável para uma nova convivência humana (FS p. 53).
O cristão tem o dever de participar também ele nesta busca diligente, na organização e na vida da sociedade política. Ser social, o homem constrói o seu destino, numa série de grupos particulares que exigem, como seu complemento e como condição necessária para o próprio desenvolvimento, uma sociedade a mais ampla, de características universais, a sociedade política. Toda a atividade privada deve enquadrar-se nesta sociedade ampliada e toma, por si mesmo, a dimensão do bem comum" (OA, 24; CDSI 189).
A participação eficaz na construção do bem comum requer duas condições básicas fundamentais:
a) Necessidade de uma educação adequada.
A participação qualitativa na vida política requer uma educação adequada “tanto para o povo como, sobretudo, para a juventude a fim de que todos os cidadãos possam desempenhar seu papel na vida da comunidade política” (GS 75, 4).
Uma forma de motivar a participação política dos cristãos é a promoção de cursos, grupos de reflexão, formação e ação (Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil: DGAEIB 2008-2009, 187).
Outro elemento importante na educação política é a informação sobre os direitos de cada um e o reconhecimento dos deveres de cada um em relação aos outros. É bom salientar que o sentido e a prática do dever sofrem o condicionamento do domínio de si mesmo, a aceitação das responsabilidades e das limitações impostas ao exercício da liberdade do indivíduo ou do grupo (OA 24, 2).
b) Exercício da cidadania plena.
O exercício da participação leva ao compromisso de transformar a sociedade onde o bem comum é a prioridade das prioridades. O primeiro passo é assumir as próprias responsabilidades com a comunidade e a sociedade através da participação democrática. Não se deixar guiar pelo individualismo e corporativismo. Isso acontece através:
- da co-responsabilidade na gestão dos bens públicos (escolas, postos de saúde, orçamento municipal) através da participação nos conselhos paritários (da saúde, da assistência social, da criança e adolescente...). Acompanhar, apoiar, fiscalizar as Câmeras Municipais, as Assembléias Legislativas, o Congresso Nacional, o Poder Executivo e Judiciário para saber onde são gastos os recursos públicos. Assim o Estado estará a serviço dos interesses da população e não de poucos privilegiados.
- do cuidado na escolha dos representantes do povo; avaliar o desempenho dos partidos e acompanhar a atuação dos eleitos.
- da promoção da formação política e do estudo dos programas dos partidos. E de outras iniciativas (cartilhas, palestras, debates e escolas de fé e política).
- do incentivo da participação nos partidos, nos sindicatos e nos movimentos sociais.
- da intensificação da ação social em parceria com os poderes públicos, outras Igrejas e com as ONGs (Organizações Não Governamentais).
- de outros instrumentos de participação ativa do povo: plebiscito, referendo, participação nos orçamentos municipais.
- do favorecimento da participação dos excluídos na vida da sociedade. “... se torna imprescindível à exigência de favorecer a participação, sobretudo dos menos favorecidos no mundo da política na defesa de seus direitos” (CDSI 189; P. 1162).
VII. A fé inspira a militância cristã na ética.
  1. A ética pessoal do militante.
A caridade é a essência da vida cristã. Ela “é o princípio não só das microrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macrorelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos”(CV 2). Ela é dom de Deus. “a sua nascente é o amor fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor redentor, pelo qual fomos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo” (Jo 13, 1) (CV 2).Ele o testemunho, sobretudo, “com a sua morte e ressurreição” (CV 1). Deus derrama esse amor “em nossos corações pelo Espírito Santo”(Rm 5, 5) (CV 5).
O ser humano recebe o amor de Deus como graça, Ed de ‘graça’. E é chamado por Deus a ser instrumento da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade (CV 5). Ela é “força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira” (...). è “uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz” (CV 1).
O documento acentua que é de fundamental importância relacionar a caridade com a verdade. “Sem a verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade” (CV 3). Por outro lado, um “cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social, mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar par Deus no mundo” (CV 4). “Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa, uma vocação a nós dirigida para amarmos os nossos irmãos na verdade d seu projeto. De fato, Ele mesmo é a Verdade” (Jo 14, 6).
Os mistérios da espiritualidade cristã conduzem a atitudes básicas que conformam o comportamento ético do militante. “Falamos aqui, em primeiro lugar, dos grandes imperativos morais do militante, imperativos esses ligados às virtudes cardeais: prudência, (dispõe a razão prática a discernir em qualquer circunstância nosso verdadeiro bem e os meios adequados para realizá-lo), justiça, (vontade constante e firma em da a Deus e ao próximo o que lhes é devido)temperança, (modera a atração pelos prazeres e procura o equilíbrio no uso dos bens criados) fortaleza (dá segurança nas dificuldades,firmeza e constância na procura do bem). Eis os principais:
- amor pela coisa pública;
- opção preferencial pelos pobres e excluídos;
- espírito de serviço ao povo;
- magnimidade ou grandeza de alma, que leva a transcender toda mesquinharia e ser generoso no perdão e na reconciliação para com todos, mesmo para com os inimigos;
- fortaleza na luta, mesmo sob as ameaças de morte;
- parresia, ou coragem de dizer a verdade, incluindo a denúncia profética;
- inconformismo e rebeldia contra toda injustiça;
- sobriedade como padrão de vida (pobreza evangélica);
- valorização do que é pequeno, mas seminal;
- modéstia ou humildade política;
- simplicidade das pombas, dialeticamente aliada à prudência das serpentes (Mt 10, 16);
- mansidão evangélica, ou seja, ânimo pacífico, que prefere lançar mão dos meios não-violentos, por atuarem sobre as consciências e serem acessíveis a todos (Mt 10, 16).
Falamos, em segundo lugar, daqueles imperativos básicos que estão no fundo dos comportamentos acima e que se situam do lado das “virtudes teologais”: fé, esperança e caridade. Eis alguns deles:
- a confiança da Graça, sempre mais forte que o pecado (Rm 6, 20), graça que pode transformar os corações mais inflexíveis a abrir as situações mais fechadas;
- o senso da Cruz nos contextos de perseguição e d martírio, conseqüências do empenho para instaurar a justiça e a solidariedade;
- a perseverança frente à adversidade e ao bloqueio dos horizontes históricos, ‘esperando contra toda a esperança’ e acreditando que ‘o assassino não prevalecerá para sempre desde a vítima’ (M. Horkheimer);
- a alegria do Espírito, virtude que se mantém mesmo no seio da luta e da provação.
Como se vê, aqui estamos no campo da ética política, que é de per si distinta da espiritualidade. Pois a ética consiste em imperativos e deveres, enquanto espiritualidade vive de verdades e certezas. “Mas, para ser efetiva e se difundir, a ética precisa estar animada de dentro por uma espiritualidade e nela se enraizar”. P. 205-206).
2. O bem comum: princípio ético do Estado.
O princípio do bem comum expressa qual dever ser o comportamento do Estado em relação ao povo que governa e administra. Sua razão de ser, de existir e de agir está vinculada ao bem comum. “A comunidade política existe precisamente em vista do bem comum; nele ela encontra a sua completa justificação e significado, e dele deriva seu direito natural e próprio” (GS 75).
Em que consiste o bem comum? Ele se realiza na medida em que se cria “todas as condições sociais para que toda e qualquer pessoa ... possa desenvolver plenamente a sua dignidade” (PT 53). Em outras palavras, ele se concretiza “no conjunto de todas as condições de vida social que consistam e favoreçam o desenvolvimento integral da pessoa humana"(MM 62). O bem comum é superior ao bem privado, mas inseparável do bem da pessoa. O bem comum nacional é a responsabilidade e a própria razão de ser do Estado que só pode realizar aquilo que promove o bem de todos sem discriminação.
A responsabilidade primeira do Estado de promover o bem comum, não isenta todos os cidadãos, em nível pessoal e em nível de grupos organizados, de contribuir na promoção do bem comum. Nesse sentido, todos devem empregar “bens e serviços na direção indicada pelos governantes, dentro das normas da justiça e na devida forma e limites de competência” (PT 53).
Para compreender melhor o alcance concreto do bem comum destacamos quatro aspectos fundamentais:
a) Respeitar e garantir os direitos fundamentais de todas as pessoas.
"Em nome do bem comum os poderes públicos são obrigados a respeitar os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana. A sociedade é obrigada a permitir que cada um de seus membros realize sua vocação. Em particular, o bem comum consiste nas condições para exercer as liberdades naturais indispensáveis ao desabrochar da vocação humana. 'Tais são os direitos de agir segundo a norma reta da consciência, o direito à proteção da vida particular e à justa liberdade, também em matéria religiosa"(CIC 1907).
"O desenvolvimento é o resumo de todos os deveres sociais. É claro, cabe a autoridade servir de árbitro, em nome do bem comum, entre os diversos interesses particulares. Mas ela deve tornar acessível a cada um aquilo de que precisa para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, saúde, trabalho, educação e cultura, informação conveniente, direito de fundar um lar, etc"(CIC 1908).
b) Promove a paz na sociedade.
Só pode viver dignamente e desenvolver-se integralmente quem vive pessoal e coletivamente numa sociedade onde reina a paz. Ela consiste numa"... ordem justa, duradoura e segura. Supõe, portanto, que a autoridade assegure, por meios honestos, a segurança da sociedade e a de seus membros, fundamentando o direito à legítima defesa pessoal e coletiva"(CIC 1909).
c) Priorizar os pobres nas políticas públicas.
Numa sociedade desigual, como a nossa, os que têm sua dignidade ameaçada merecem uma atenção especial de toda a sociedade. "A sociedade inteira deve ser solidária com todos os homens, solidária, em primeiro lugar com o homem que tem mais necessidade de auxílio, o pobre. A opção pelos pobres é uma opção cristã; é também uma opção da sociedade que se preocupa com o verdadeiro bem comum"(CNBB 38, 94).
d) Construir o bem comum internacional
Diante do mundo globalizado onde as interdependências entre as nações são cada vez maiores se faz necessário pensar e promover o bem comum em nível internacional. Ele é denominado como o bem da comunidade das nações (CA, 52). "As dependências humanas se intensificam. Estende-se aos poucos à terra inteira. A unidade da família humana, reunindo seres que gozam de uma dignidade natural igual, implica um bem comum universal. Este exige uma organização da comunidade das nações capaz de 'atender às várias necessidades dos homens, tanto no campo da vida social (alimentação, saúde, educação...) quanto em certas condições particulares que podem surgir cá ou lá, tais como a necessidade (...) de acudir aos sofrimentos dos refugiados (...) bem como de ajudar os emigrantes e suas famílias" (CIC 1911).
VIII. A fé inspira a militância cristã na prática da justiça social.
A justiça como fruto do amor. Segundo nossa fé o amor é fruto do Espírito Santo. E ele não está desligado do amor ao próximo. Isso Jesus deixa bem claro depois de lembrar o amor a Deus: "amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas" (Mt22, 39-40). LC 55.
O amor cristão tem uma identidade própria. Seus traços principais são os seguintes: amor aos inimigos e perseguidores; amor misericordioso; amor cheio de compaixão; amor gratuito e universal. LC 55.
O amor vivido e pregado por Jesus se converte no imperativo da prática da justiça. " O amor evangélico e a vocação de filho de Deus, à qual todos os homens são chamados, tem como consequência a exigência, direta e imperativa, do respeito de cada ser humano em seus direitos à vida e à dignidade. Não existe distância entre o amor ao próximo e a vontade de justiça. Opor amor e justiça seria desnaturar a ambos. Mais ainda, o sentido da misericórdia completa o da justiça, impedindo a esta última de se fechar no círculo da vingança".(LC). O amor que deságua na promoção da justiça prioriza os pobres. "O amor ao homem - em primeiro lugar ao pobre, no qual a Igreja vê Cristo - concretiza-se na promoção da justiça. Esta nunca se poderá realizar plenamente, se os homens não deixarem de ver nos necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um inoportuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem em si, a possibilidade de uma riqueza maior"; CA58
Por isso, "As desigualdades iníquas e todas as formas de opressão, que hoje atingem milhões de homens e mulheres, estão em aberta contradição como Evangelho de Cristo e não podem deixar tanquila a consciência de nenhum cristão" LC57.
Sentido amplo da justiça. Como vimos a justiça tem como fonte o amor ao próximo. E tem como objetivo, regular as relações humanas e sociais no sentido de respeitar os direitos de cada um. É o que diz o Sínodo dos Bispos sobre a justiça no mundo: "O amor é antes de tudo exigência absoluta de justiça, isto é, reconhecimento da dignidade e dos direitos do próximo" JM 37.
Dentro desse espírito, a Igreja define o sentido de justiça como virtude moral. "a justiça é uma virtude moral que consiste na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhe é devido. A justiça para com Deus chama-se 'virtude da religião'. E para com os homens ela dispõe a respeitar os direitos de cada um e a estabelecer nas relações humanas a harmonia que promove a equidade em prol das pessoas e do bem comum. O homem justo, muitas vezes mencionado nas Escrituras, distingue-se pela correção habitual de seus pensamentos e pela retidão de sua conduta para como o próximo". CIC 1807.
Sentido da justiça social. O amor cristão se dirige a Deus e ao próximo. O amor ao próximo se pratica na vivência da justiça no sentido geral que nos referimos acima. Porém o ser humano vive em relação com os outros, com a comunidade e com a sociedade. O amor cristão praticado no âmbito da sociedade chama-se justiça social.
"A Igreja fala de justiça social para definir o que compete à sociedade para garantir as condições e os meios básicos que permite aos grupos, as associações e às pessoas obter o que lhes é necessário segundo a sua natureza e vocação. Por isso, a justiça social está ligada ao bem comum e ao exercício da autoridade" (CIC 1928).
A justiça social está intimamente ligada ao bem comum. "É próprio da justiça social, impor aos membros da comunidade tudo o que é necessário ao bem comum. Porém, do mesmo modo como num organismo vivo provemos as necessidades do corpo inteiro fornecendo a cada uma de suas partes e a cada um de seus membros o que lhes falta para que cumpram suas funções, assim também, em toda a coletividade, é preciso que se dê a cada uma das partes e a cada um de seus membros - ou seja, homens que tenham a dignidade de pessoas - aquilo que lhes é necessário para o cumprimento de suas funções sociais" (DR 51).
Todo ser humano é portador de uma dignidade inviolável e sujeito de direitos e deveres que o dignificam na sua relação com Deus como filho, com os outros como irmãos e com a natureza como senhor. Mas não é suficiente o reconhecimento formal dessa dignidade e igualdade fundamentais. É preciso que esse reconhecimento seja traduzido na proporção de condições concretas para realizar e reivindicar os direitos fundamentais de todos os homens e de todas as mulheres: direito à vida e a um padrão digno de existência, direito à saúde e ao lazer; direito à educação, inclusive religiosa e a escolher o tipo de educação desejada para os filhos; direito à liberdade religiosa; direito ao trabalho e à remuneração suficiente para o sustento pessoal e da própria família; direito de todos à propriedade, submetida à sua função social; direito à segurança, à preservação da própria imagem e à participação da vida política”. (CNBB, 38, 91).
Além disso, os direitos da pessoa pode ser ampliado: à vida; à integridade corporal, à defesa contra a sujeição forçada da mente ( GS 27), à proteção do ambiente físico (OA 21), à proteção contra a tortura moral ou física (GS 27), aos meios suficientes para um nível de vida digno, incluindo: alimentação, habitação, cuidados médicos, lazer (PT 11), aos meios para desenvolver-se por si mesmo (GS 69), ao trabalho em condições justas (GS 66), sem ofender a dignidade física (RN 35), sem prejudicar a vida familiar do trabalhador (RN 16), com remuneração justa (RN 16), à propriedade particular dos bens necessários para liberdade pessoal e familiar (GS 71), à iniciativa econômica (MM 51-58), a participar equitativamente da riqueza nacional (OA 16), aos serviços indispensáveis dos Estado, em caso de: doença, invalidez, velhice, viuvez, demissão de emprego, ou contra causa involuntária em que se perdem os meios de subsistência (PT 11), a conhecer e exercer seus direitos e deveres (GS 75), a não ser discriminado por razão de sexo, raça, cor, condição social, língua ou nacionalidade (GS 29 e 66).
A sociedade humana consegue desenvolver-se adequadamente se tiver uma autoridade legítima que persiga o bem comum. “A sociedade humana não estará bem constituída nem será fecunda a não ser que lhe presida uma autoridade legítima que salvaguarde as instituições e dedique o necessário trabalho e esforço ao bem comum” (CIC, 1897). A legitimidade da autoridade está ligada ao emprego de “meios moralmente lícitos. Se acontecer que os dirigentes promulguem leis injustas ou tomem medidas contrárias à ordem moral, estas disposições não poderão obrigar a s consciências” (CIC 1903). Para evitar que a autoridade extrapole seus limites é necessário “que cada pode seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no justo limite. Este é o princípio do 1estado de direito, no qual é soberana a lei, e não a vontade arbitrária dos homens” (CIC 1904).
IX. Espiritualidade política.
O texto que segue é fruto da síntese livre do artigo de Clodovis Boff sobre Espiritualidade do Militante (com enfoque pneumatolótgico) no livro: Fé e Política, fundamentos, Pedro A. Ribeiro de Oliveira, organizador, editora, Idéias e Letras, 2004, Aparecida, p.191-214.
1. Espiritualidade: “andar segundo o Espírito.
São Paulo usa essa expressão para identificar a vida espiritual (Rm 8, 5; Gl 5, 16-18). O sentido profundo de espiritualidade é viver segundo o Espírito de Deus. Isso diz respeito a tudo o que o seguidor de Jesus faz até mesmo as coisas menos espirituais, como comer, beber, repousar, trabalhar e também fazer política. A base, a essência de toda a espiritualidade é viver a totalidade da vida segundo o Espírito de Deus.
O Espírito de Deus é o Espírito de Jesus, o Espírito Santo. Como foi dito é Ele quem enviou, consagrou e ungiu Jesus. E Jesus é o modelo de alguém que se deixou conduzir pelo Espírito de Deus. Por isso, temos em Jesus a referência inspiradora de alguém que viveu em plenitude segundo o Espírito. Ele através de sua palavra, de seu exemplo, de suas promessas, de seu Reino é a luz que ilumina todo modo de ser e de agir de seus seguidores. Numa palavra, espiritualidade é viver do jeito de Jesus, pois Ele viveu e concretizou o Reino de Deus guiado pela força do Espírito Santo.
E o modo de ser, de viver e de agir de Jesus se resume numa palavra: ágape ou amor cristão. “Pois aí está a ‘forma’ de toda a atividade do cristão, inclusive da política. A ágape é como a alma da militância política: ele anima, direciona e unifica toda a prática política do cristão comprometido. Em resumo, o Espírito nos remeta a Cristo e Cristo nos remete ao amor Agápico.
Na verdade Cristo apontou a ágape como o “sinal de reconhecimento ou “senha’ de seus discípulos: se vos amardes uns aos outros” ( Jo 13, 35). Não só: o testemunho da ágape é o primeiro e fundamental apostolado do cristão leigo. Lemos, com efeito, em outro passo: “Que todos sejam um, a fim de que o mundo creia”(Jô 17, 21; cf. v. 23).
A política para um cristão é uma forma da ágape: uma diaconia de libertação, um serviço de amor. O político cristão é a seu modo um pastor do povo. Assim também eram chamados os chefes dos povos no mundo antigo, inclusive no mundo bíblico (cf. Ez 34; Mt 9, 36; Jo 10). p. 199.
O agapé ou amor cristão direciona todo o jeito de militar na política. O jeito está ligado ao como, a maneira de fazer política. É um jeito de fazer inspirado no espírito da ágape ou da caridade cristã. Da fonte do espírito agápico emerge duas virtudes do militante: amabilidade e discrição.
A amabilidade no sentido de respeitar o ser humano e de cultivar a amizade para com cada pessoa, mesmo para com o adversário político. O Vaticano II fala em “afabilidade” (AA 4, 9). E o NT em “mansidão” (Mt 5, 5; 11, 29), em “doçura” evangélica (1 Pd 3, 16; Cl 3, 12). Isso é mais relevante na medida em que os políticos gozam do pouca simpatia na opinião pública. Só políticos autenticamente amáveis tornam a política amável.
Discrição em relação à própria confissão de fé. “Portanto, numa cultura que deprecia a fé ou a instrumentaliza, e isso é evidente na esfera política, deve-se seguir a consigna de Jesus: “Não jogueis vossas pérolas aos porcos” (Mt 7, 6). Não que a confissão manifesta da fé não possa ter lugar, apresentando-se a oportunidade. Mas o regime normal é a ‘discrição verbal e a aposta no testemunho puro”. P. 200.


2. A espiritualidade própria do militante em geral.
A espiritualidade do militante é a espiritualidade do cristão, pois, antes de ser militante ele é cristão. O caminho de santificação cristão é um só: o seguimento de Jesus Cristo. Ao falar de espiritualidade para os leigos o Vaticano II diz que ela consiste essencialmente na prática das três virtudes teologais, a saber, fé, esperança e caridade (AA 4).
Cada cristão a partir de sua vida e de seu engajamento viverá as virtudes teologais ao seu modo. Por isso, existe e deve existir um estilo militante de viver a fé, a esperança e a caridade. Esse estilo ‘militante de viver a espiritualidade cristã tem três tratados: espiritualidade encarna no mundo; espiritualidade com ênfase e espiritualidade dialética.
a) Espiritualidade ‘encarnada’ na laicidade política.
Jesus assumiu a natureza humana, menos o pecado, para redimi-la. Do mesmo modo o militante assume a natureza política, menos o pecado nela presente, para salvá-la. Jesus ao assumir a natureza humana percebeu a maravilhosa presença de Deus no ser humano e os sinais de Deus na obra humana. Assim o militante, perscruta os sinais de Deus na natureza política e nela percebe as maravilhas de Deus, os seus apelos, e a vive a partir do Espírito de Deus.
A fórmula de sua identidade espiritual é: contemplação na ação. E ao mesmo tempo, ela contribui para ‘espiritualizar o mundo político na medida em que vive em sintonia com o Espírito. Diz muito bem o decreto conciliar sobre os leigos: “Os assuntos seculares não devem ser estranhos à espiritualidade da vida cristã do leigo, segundo a expressão do apóstolo: ‘O que quer que fizerdes, por palavra ou ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus Cristo, dando graças a Deus Pai por Ele’ (Cl 3, 17; AA 4, 1).
b) Espiritualidade com ênfase.
Há ênfases ou destaques legítimos que dão os militantes a partir do riquíssimo universo da espiritualidade cristã. Eles como que ‘declinam’ os ‘mistérios cristão’ na ótica da militância. Conferem como uma ‘inflexão’ próprias às verdade da fé.
Vejamos mais concretamente como isso se dá, ou seja, como as grandes verdades da fé podem inspirar o militante cristão como tal. Assim, ganham em relevo particular os seguintes passos:
- o Cristo Jesus, o profeta do Reino, amigo pelos pobres, apaixonado pelo Pai e por sua vontade;
- o Espírito, como grande e misterioso agente da história, e que age no coração da humanidade, despertando toda a sorte de boas inspirações na direção de mais justiça e paz;
- a Pessoa Humana como centro de toda a instituição humana (o sábado foi feito para o homem);
- a Encarnação, enquanto leva à comunhão profunda com a paixão e esperança do povo oprimido;
- o Reino, como grande sonho de Jesus de um mundo desalienado e confraternizado em todos os seus níveis;
- a Cruz como preço e ao mesmo tempo caminho de transformação pessoal e social;
- a Ressurreição, como fonte de esperança radical, para além de todos os impasses históricos;
- a Graça, como força divina de libertação dentro de um mundo dividido e contraditório;
- o Pecado, como realidade particularmente evidente no campo do poder em sua tendência à hybris, à desmedida, à prepotência; donde a advertência contínua de Cristo à vigilância;
- É de temas como esses que o militante deve impregnar-se em profundidade, até que se tornem nele carne e osso, corpo e espírito”. P. 203-204.
c) Espiritualidade dialética.
É uma espiritualidade em duas mãos. Ela nutre toda a vida, em particular a política. Porém, a política já carrega consigo a habitação, o fermento e as energias do Espírito.
Daí a necessidade de reconhecer a presença e a ação do Espírito na vida política.
Seria, contudo, ilusório pensar que basta o envolvimento na ação para alimentar-se espiritualmente, sob o pretexto de que ‘tudo é oração’ ou de que ‘Deus está onde se prática a justiça e o amor’. Os enamorados sabem que não basta lutar pela pessoa amada; importa também se relacionar intimamente com ela. Só quem sabe ver Deus na imediatidade consegue vê-lo nas mediações. Só quem se abre a Ele na gratuidade pode descobri-lo na libertação. Para isso não bastam duas a três devoções por dia. “È preciso mais que a devoção de um dia para conhecer e possuir a riqueza de um dia” – escreve Henry D. Thorau, o maior poeta do EUA e militante da “desobediência civil”. P. 204.
3. Espiritualidade específica do político cristão: espiritualidade do poder.
O ponto anterior tratou do militante cristão em geral. Aqui vamos refletir sobre o militante político. Aquele que lida com o poder. Portanto, se trata da espiritualidade do poder.
Quando se reflete sobre o poder importa ser realista. Ele não é mau, mas carrega consigo risco e perigo, pois tem a tendência em se tornar poder-dominação. É só olhar a história passada com seus despotismos e imperialismos. E o momento atual com os totalitarismos modernos e as ditaduras de vários gêneros. Nem mesmo, a democracia do jeito que está gera entusiasmo.
Os grandes filósofos políticos, os antigos e os novos, advertem sobre o demonismo no poder político, enquanto todo o poder tende como que naturalmente, para o abuso, o arbítrio e a dominação. “O poder quer sempre mais poder”, sentenciou Hobbes.
Também a apocalíptica, judaica e cristã, descreve com uma inigualável força expressiva o satanismo do poder sob a forma teratológica de figuras monstruosas, como se pode ver em Daniel e no apocalipse.
Segundo S. Gregório Magno, no campo do poder não pode haver ingenuidade. Ele teve experiência do poder como prefeito de Roma e embaixador em Constantinopla e o fez de modo exemplar. Diz ele que só exerce bem o poder aquele que conhece a sua força de seduzir e de cegar: do contrário, será vítima dele. p. 2007-208.
Em vista, de colocar freios no poder, a democracia institui diferentes mecanismos de controle e limitação de poder: divisão dos poderes, alternância, eleições diretas, prestação de contas, etc.
Jesus Cristo propôs uma concepção revolucionária de poder, o poder-serviço. É um pode essencialmente diferente do poder-dominação. Ele é convertido, exorcizado do demônio da prepotência que costuma fazer nele sua habitação. Trata-se de um ‘evangelho’, uma boa-nova que deve ser vivida como um credo, uma convicção profunda. “A idéia de poder-serviço deve estar profundamente enraizada no coração do cristão militante. Para ele, esse poder-serviço deve constituir um tema permanente de meditação e uma fonte perene de inspiração. Trata-se de um ideal que deve penetrar em todas as veias da alma e do corpo, para daí irradiar em forma de atitudes e de comportamentos conseqüentes”. p. 208.
O conteúdo do poder-serviço se desdobra em três atitudes fundamentais: a) “A gratuidade, é a despretensão ou o desinteresse com que se há de exercer o poder. É trabalhar para o povo sem pensar em recompensas pessoais e em outros dividendos meramente corporativos. Nada mais eloqüente desse espírito que a parábola do ‘servo inútil’ (Lc 17, 7-10; P. 208); b) A ausência de ambição. A política é palco para a glória e escada par a autopromoção. Relembremos que o vedetismo foi uma das tentações de Cristo: lançar-se abaixo do pináculo do Templo, aos olhos e com o aplauso da multidão (Mt 4, 5-7). Ao contrário, o que vale aqui é a palavra do Mestre: ‘Quando deres esmola, não toques a trombeta.. Que tua mão esquerda não saiba o que faz a direita’ (Mt 6, 2-3); c) O empenho generoso em favor do outro. Esse é o sentido evangélico do poder como serviço. É um tipo de trabalho que: rende os talentos em favor dos outros (Mt 25, 24-30); seja ‘amoroso’, ao modo do Bom Pastor (Jo 10); dispõe a ‘dar a própria vida’ em benefício dos irmãos (Mc 10, 45; Jo 10, 11; Mt 16, 25). Todas essas atitudes se resumem numa virtude chamada humildade. É uma virtude de primeira ordem na política porque é antídoto de toda dominação. Longe da humildade, tirar o poder. Ela o purifica, o radicaliza e o reforça na sua essência evangélica de ser libertador.
O poder só é serviço quando é instrumento de justiça. Ela é a qualidade principal de um governante. O poder não tem outra finalidade a não ser instaurar a justiça. Em outras palavras, só o direito pode legitimar a força e nunca o contrário. Daí porque ‘fome e sede de justiça’ (Mt 5, 6), mesmo à custa das perseguições (Mt 5, 10-11) é a grande virtude do verdadeiro político”) (P. 209).

Abreviaturas:
  1. ONGs: Organizações não governametais.
  2. P: Documento de Puebla.
  3. DSD: Documento de Santo Domingo.
  4. GS: Documento do Vt. II, Gaudiun et Spes.
  5. LC: Documento Instrução sobre Liberdade Cristã e a Libertção.
  6. EN: Documento Evangelii Luntiandi.
  7. CIC: Catecismo da Igreja Católica.
  8. MM: Documento Mater et Magistra.
  9. SRS: Documento Sollicitudo Rei socialis.
  10. OA: Documento Octoagesima Advenians.
  11. CDSI: Compendio da doutrina Social da Igreja.
  12. OIT: Organização Internacional do Trabalho.
  13. LE: Documento Laborem Execens.
  14. PT: doumento Pacen in Terris.
  15. CA: Documento Centtessimus Annos.
  16. DSI: Doutrina Social da Igreja.

Texto provisório de Frei Flávio Guerra.