Entrevista
com Ana Tércia Sanches
“Os
empresários, toda vez que pensam em terceirização e na revisão da
CLT, usam um falso discurso, que é o da modernidade”, frisa Ana
Tércia Sanches,
em entrevista concedida por telefone à IHU
On-Line.
Para ela, esse discurso normalmente vem acoplado à ideia de que a
terceirização gera emprego. “Tudo isso é mentira e não se
sustenta nem técnica nem empiricamente, tampouco pelas estatísticas.
Essa é uma reforma trabalhista às avessas porque é o contrário do
que os empresários dizem, de que é moderna, que gera mais
empregos”. Segundo a historiadora, na verdade, ela é uma reforma
que, pelas medidas que podem ser tomadas pelas empresas e pela forma
de gerir o capital (fazer gestão das organizações através da
terceirização), consegue atender aos interesses dos empresários,
visando redução de custos, mas fazendo isso a custa dos
trabalhadores, porque as margens de lucro se mantêm bastante
elevadas. “Então, o que vemos é um favorecimento dos empresários,
que conseguem ter mais acúmulos de poder, rentabilidade e
lucratividade, em detrimento dos trabalhadores, que empobrecem”,
afirma.
Ana
Tércia Sanches
possui graduação em História pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP, é mestre em Ciências Sociais
pela mesma instituição e especialista em Economia do trabalho e
Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É
doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade de São
Paulo – USP.
Confira
a entrevista.
IHU
On-Line – Quais os desafios que se apresentam ao mundo do trabalho
hoje, considerando principalmente a questão da terceirização e da
precarização?
Ana
Tércia Sanches – Considerando
todas as mudanças que aconteceram no mundo do trabalho nos últimos
anos no Brasil, percebemos que a terceirização é a forma mais
agressiva com relação à retirada dos direitos. Então, se
pensarmos nos sindicatos, que foram constituídos há muitos anos, e
nas categorias profissionais organizadas, estas últimas levaram anos
para conquistar direitos que se diferenciam mais e melhor com relação
à Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Quando a
terceirização chega, ela consegue derrubar tudo isso, porque esses
trabalhadores vão praticamente ter rasgado todo o conjunto de
direitos que os sindicatos levaram anos para tentar conquistar.
Portanto, a terceirização pode ser vista como um dos principais
desafios, na medida em que ela significa uma reforma completa, às
avessas do que nós gostaríamos, uma vez que os sindicatos
trabalhistas querem melhorar e ampliar os seus direitos. Ademais,
esta política da terceirização consegue fazer ruir todo esse
processo social e, portanto, eu diria que ela é o principal desafio
e o principal problema que os trabalhadores e as categorias
organizadas têm vivido nos últimos anos.
IHU
On-Line – O que deveria fazer parte de uma reforma trabalhista no
Brasil?
Ana
Tércia Sanches –
A pauta da reforma trabalhista é patronal, não tem tido uma demanda
do ponto de vista dos trabalhadores, como já foi em outros momentos.
Os sindicatos se preocupam com o emprego. Apesar de o Brasil viver
uma fase de crescimento, de geração de postos de trabalho, essa é
uma preocupação constante dos sindicatos. Então, eles têm feito
uma defesa pela aprovação da convenção 158 da Organização
Internacional do Trabalho – OIT. O Brasil não é signatário da
convenção 158. E ela prevê a não demissão imotivada. Ou seja,
para o empregador realizar qualquer processo de demissão, ele
deveria justificá-la socialmente, informando s; se a empresa está
em regime de falência etc. Algo parecido com o que acontece nos
países da Europa, já que muitas nações são signatárias dessa
Convenção da OIT. Então, atualmente existem alguns temas, tais
como a liberdade e autonomia sindical, que preservam os espaços de
negociação, tanto no setor privado como no público. E a agenda do
sindicato é pautada por itens que compõem uma reordenação no
mundo do trabalho que possa, de fato, trazer e levar os trabalhadores
a um patamar civilizatório mais moderno, no sentido de tratá-los
com respeito, de trazer conquistas para eles. Ou seja, nós sabemos
que o capital consegue acumular e promover novos investimentos.
Agora, os trabalhadores não. Estes últimos normalmente recebem
reposição da inflação, um aumento real muito tímido. A vida
econômica do trabalhador é normalmente pautada por algo muito
contido. Ele não consegue dar um salto de qualidade em sua vida,
isso quando não observa retrocesso do ponto de vista da retirada dos
seus direitos.
IHU
On-Line – Em que sentido a CLT, promulgada em 1943, necessitaria de
uma revisão? Em que aspectos ela está mais defasada?
Ana
Tércia Sanches – A
nossa crítica à CLT tem a ver com elementos que fazem o sindicato
ter uma relação muito forte com o Estado. Nosso entendimento é que
o sindicato tem que se organizar livremente, porque assim os
interesses dos trabalhadores podem ser colocados da melhor forma
possível. Ademais, existem elementos na CLT que os sindicatos não
questionam, porque foram direitos constituídos. Mas, quando pensamos
na CLT, não estamos falando em derrubar o décimo terceiro salário,
as férias, esses direitos que foram constituídos ao longo dos anos.
Estamos questionando muito mais essa relação corporativa que os
sindicatos, desde a época de Getúlio Vargas, foram impelidos a se
vincular ao Estado, fruto de um recolhimento como é o imposto
sindical, o qual atrela a atividade sindical a um consentimento que o
Estado tem em relação aos empresários. A nossa crítica é nesse
sentido.
Porém,
é diferente da crítica do empresariado que pretende fazer uma
revisão na CLT, retirando direitos. O discurso empresarial diz que o
custo Brasil e o do trabalho, portanto, é um custo elevado, porque
ele é fixo e o que os empresários querem é a flexibilidade total.
Ou seja, se for possível, concede férias no patamar que a CLT
prevê; se possível, paga o décimo terceiro salário no patamar que
a CLT vê; se for o caso, recolhe os encargos para a previdência
social também no modelo que a CLT antecipa. Então, temos diferenças
muito claras de perspectivas de revisão da CLT. A nosso ver, não é
uma revisão que busque retirada de direitos. Do ponto de vista do
empresariado, é uma revisão, sim, que prevê retirada de direitos.
IHU
On-Line – Qual sua opinião sobre o projeto de lei n. 4330, de
autoria do deputado Sandro Mabel, do PMDB-GO, que regulamenta a
terceirização em quase todos os setores da economia brasileira?
Ana
Tércia Sanches – O
projeto do Mabel representa, de fato, uma ameaça aos direitos que os
trabalhadores construíram ao longo desses anos, que foi consolidado
tanto na CLT como também nos acordos coletivos de trabalho que as
categorias mais organizadas conquistaram. É certeza que, se nós
tivermos uma lei que prevê a terceirização em qualquer tipo de
atividade, seja ela fim ou meio, vamos conseguir fazer ruir esse
processo. Se nós quisermos ser mais rigorosos, podemos dizer que
esse projeto do deputado Mabel destrói a CLT. Vou dar um exemplo: os
trabalhadores terceirizados trabalham em empresas, em que a taxa de
rotatividade é extremamente elevada. Ela consegue ser o dobro ou o
triplo do que se vê em rotatividade de outras empresas que são
constituídas nos diversos setores da economia. Isso significa dizer
que o trabalhador terceirizado está a todo o momento alterando seu
posto de trabalho, pois ele precisa de emprego. E, muitas vezes, o
que acontece é que ele trabalhou em uma empresa, mas não conseguiu
gozar férias e acaba automaticamente entrando em outra empresa,
porque ele precisa se manter empregado. Quando faz isso, ele deixa de
exercer o direito que possuía, que era o de férias. Além disso,
abandona o direito de recolher os encargos para o fundo de garantia e
perde o do décimo terceiro salário. Então, esse é um problema
nítido que podemos detectar quando a CLT começa a ser corroída,
não porque houve uma reformulação completa, anunciada, pelo
governo e pelos veículos de comunicação. Mas, na prática, no dia
a dia, a terceirização consegue corroer os direitos fundamentais,
pois os que estão na CLT são os mais básicos.
No
entanto, se vermos a categoria dos bancários, por exemplo, um
trabalhador terceirizado ganha um terço do que ganha a Convenção
Coletiva de Trabalho, que é assinada por um setor patronal, um setor
financeiro. Isso significa dizer que nós estamos promovendo uma
completa desregulamentação dos direitos a partir de um projeto de
lei que se anuncia como de terceirização, mas na prática mexe em
toda a estrutura das relações de trabalho no Brasil.
IHU
On-Line – Em que sentido esse projeto de lei pode ser considerado
uma “reforma trabalhista às avessas”, como sugerem os
sindicalistas?
Ana
Tércia Sanches –
Os empresários, toda vez que pensam em terceirização e na revisão
da CLT, usam um falso discurso, que é o da modernidade. Esse
discurso normalmente vem acoplado à ideia de que a terceirização
gera emprego. Tudo isso é mentira e não se sustenta nem técnica
nem empiricamente, tampouco pelas estatísticas. Essa é uma reforma
trabalhista às avessas porque é o contrário do que os empresários
dizem, de que é moderna, que gera mais empregos. Na verdade, é uma
reforma que, pelas medidas que podem ser tomadas pelas empresas e
pela forma de gerir o capital (fazer gestão das organizações
através da terceirização), consegue atender aos interesses dos
empresários, visando redução de custos, mas fazendo isso a custa
dos trabalhadores, porque as margens de lucro se mantêm bastante
elevadas. Então, o que vemos é um favorecimento dos empresários,
que conseguem ter mais acúmulos de poder, rentabilidade e
lucratividade, em detrimento dos trabalhadores, que empobrecem.
IHU
On-Line – Que cenário podemos esperar caso seja aprovada a
regulamentação da terceirização para os outros setores da
economia?
Ana
Tércia Sanches –
Trata-se de evidências da perda para todos os trabalhadores, em
todos os segmentos. Se analisarmos empresas fortes, como é o caso da
Petrobrás, por exemplo, veremos que ela possui um volume elevado de
trabalho terceirizado. Só que quando avaliarmos estatísticas de
morte da Petrobrás, iremos observar que mais de 83% dos casos de
óbito são relacionados ao trabalho terceirizado. Então, vemos um
cenário de piora, de deterioração, nas relações de trabalho no
Brasil com a terceirização. Ela está relacionada à precarização,
à ampliação das doenças ocupacionais e de mortes no trabalho. Se
a terceirização visa, em primeira instância, reduzir custos e a
força de trabalho é o componente mais relevante da composição do
custo de um produto e de um serviço, são os trabalhadores que irão
sair perdendo.
Regulamentação
da terceirização: perda para toda a sociedade
Além
disso, gostaria de deixar claro que, se for aprovada a terceirização,
nós também teremos um cenário ruim, que não é apenas para os
trabalhadores. É para a sociedade em seu conjunto, porque se são
rebaixados os custos da composição de um produto e de um serviço
pela força de trabalho, também será atingida a qualidade dos
serviços ofertados. Então, os clientes irão perceber que a
terceirização tem um custo que vai se reverberar na qualidade do
serviço que é ofertado. Esse é um problema que deve ser pensado
por toda a sociedade. E, se for aprovada uma lei como essa, o cenário
é muito triste, em um país onde o Produto Interno Bruto – PIB
cresce e que caminha para ser a quinta maior economia do mundo.
Pensar uma nação que tem um PIB elevado, que tem uma riqueza
interna imensa, não pode ser um país que pensa nesse avanço
concentrando riqueza nas mãos dos empresários, que almejam fazer
isso em detrimento dos trabalhadores e da força de trabalho.
IHU
On-Line – Em que medida a terceirização contribui para a
concentração de renda no país?
Ana
Tércia Sanches –
Quando analisarmos as empresas que mais terceirizam, chegaremos nessa
explicação da concentração de renda. Quem mais terceiriza no
Brasil não são os pequenos empresários e nem as pequenas empresas.
São as grandes corporações, que têm lucros bilionários, algumas
delas estrangeiras, que enviam divisas para fora do país. Essa é
uma matemática simples de perceber. Veremos que os trabalhadores
terceirizados recebem salários ínfimos, perdem direitos, e quem se
beneficia desse trabalho, quando observamos a cadeia produtiva, são
as grandes corporações, que têm aumentado seus lucros. Essa é a
sociedade que se desenha.
IHU
On-Line – Como a terceirização se relaciona com as transformações
do capitalismo contemporâneo?
Ana
Tércia Sanches –
A terceirização é parte das reestruturações capitalistas que
aconteceram na Europa a partir dos anos 1970. Nos anos 1990, chega ao
Brasil com mais força e a terceirização é um pilar fundamental
para a reestruturação produtiva que aconteceu. Ela vem acompanhada
de inovações tecnológicas, fusões e aquisições que ocorreram no
ambiente corporativo. Essas transformações foram marcadas por novas
formas de organização do trabalho.
Terceirização
como eixo fundamental
A
terceirização é um pilar forte dessas transformações que
aconteceram no mundo do trabalho, e é por isso que ao longo dos anos
1990 observamos o seu crescimento e a necessidade patronal de tentar
aprovar uma lei que desse legitimidade a essa forma de terceirização.
Hoje, se formos considerar as outras instâncias que estão abaixo do
Tribunal Superior do Trabalho – TST, que é a maior, que julgam os
duelos trabalhistas, veremos que existem milhões de ações de
trabalhadores questionando os processos de terceirização e os
direitos que não são recebidos. Portanto, a terceirização foi
fundamental nessa reestruturação produtiva, que no Brasil ganhou
força nos anos 1990, mas ainda não terminou. Essa reestruturação
é algo que vem acontecendo de forma contínua ao longo desses
últimos 20 anos e a terceirização foi eixo fundamental.
IHU
On-Line – Como o governo Dilma e o Ministério do Trabalho têm se
posicionado em relação às transformações no mundo do trabalho no
Brasil?
Ana
Tércia Sanches –
Vale a pena fazer uma diferenciação entre os governos de Dilma e
Lula com aquele veio antes. As principais formas de reestruturação
e de flexibilização, medidas que foram flexibilizando o mercado de
trabalho brasileiro, surgiram na década de 1990, em especial nos
anos do governo Fernando Henrique Cardoso. Então, vimos nascer a
criação do banco de horas, a regulamentação do trabalho aos
domingos etc. Além disso, foram flexibilizadas as formas de
contratação e outros mecanismos que o governo auxiliou, do ponto de
vista da flexibilização dos direitos. Nesse momento, houve a
reestruturação capitalista das empresas no Brasil.
Governo
Dilma
O
governo Dilma atualmente tem recebido uma pressão constante por
parte dos empresários para aprovar um projeto de lei que regulamente
a terceirização no Brasil com o viés deste grupo, que busca
garantir a terceirização geral e oferecer a segurança jurídica a
eles. Então, o governo da presidenta recebe a pressão patronal, mas
também tem dialogado e recebido o setor que representa os
trabalhadores. O que ela tem dito em reuniões públicas é que em
seu governo não haverá aprovação de nenhuma lei que vise
flexibilizar direitos. Sabemos que há uma disputa e um tensioamento
social entre as forças políticas e os representantes dos
trabalhadores. Mas nós esperamos que a palavra de Dilma seja mantida
e que não exista nenhuma lei que retire os direitos dos
trabalhadores.
IHU
On-Line – Você concorda que o emprego no país é marcado por alto
nível de informalidade, baixos salários e empregos precários?
Ana
Tércia Sanches –
Preciso ainda concordar com isso. Se observarmos as negociações das
diversas categorias, veremos que elas tiveram reposição da inflação
e aumento real de salário. Isso é um dado e precisamos identificar.
Mas o Brasil ainda tem um nível de informalidade muito elevado.
Porém, isso é algo que diminuiu nos últimos anos por conta do
avanço do emprego com carteira assinada. Há um estudo do Pochmann,
que trabalha com isso, e algumas pesquisas do Dieese que dizem que
esses empregos novos gerados são de baixos salários e com baixa
qualificação. Portanto, temos que ter cautela para olhar tudo isso.
Precisamos
comemorar o avanço da formalização, mas devemos perceber que tipo
de emprego está sendo gerado. Nesse sentido, o que vemos é uma
migração dos empregos que estavam vinculados às categorias
profissionais organizadas, que se liga ao tema da terceirização. Ou
seja, o crescimento do volume de empresas terceirizadas é o que
explica o nível de formalização com baixos salários. A
terceirização é uma explicação para isso. Mas, se o país cresce
e a lucratividade das empresas é satisfatória, faz-se necessário
manter o crescimento de empregos, porém pagando os salários que
possam ser considerados justos, que sejam pensados do ponto de vista
do bem-estar dos trabalhadores.
Revista
IHU On-Line,
n. 390, 30-04-2012.