Introdução.
A
Igreja tem a missão de “anunciar e atualizar o Evangelho na
complexa rede de relações sociais” onde o ser humano está
inserido, isto é, da “própria sociedade”. A missão social da
Igreja refere-se ao cuidado do ser humano, pois este vive inserido na
sociedade. E sua “convivência social, com efeito, não raro
determina a qualidade de vida e, por conseguinte, as condições em
que cada homem e cada mulher se compreendam a si próprios e decidem
de si mesmos e da própria vocação”. Esta é a razão pela qual a
Igreja se ocupa “com tudo o que na sociedade se decide, se produz e
se vive, numa palavra, à qualidade moral, autenticamente humana e
humanizadora da vida social”. Por isso, “a política, a economia,
o trabalho, o direito, a cultura não constituem um âmbito meramente
secular e mundano e, portanto, marginal e alheio à mensagem e à
economia da salvação”(Compêndio da Doutrina social da Igreja -
CDSI, 62). A palavra oficial da Igreja sobre a sua missão social
encontra-se no seu Ensino Social, ou, em outras palavras, na sua
Doutrina Social.
Por
isso, O Ensino Social da Igreja tem uma palavra a dizer sobre os
desafios do desenvolvimento humano, econômico e técnico. Esta
palavra diz respeito à compreensão que a Igreja tem do
desenvolvimento da qual provém diretrizes de ação no sentido de
torná-lo mais justo e solidário.
Desde
o início de nossa reflexão é bom saber que para o Ensino Social da
Igreja o desenvolvimento humano, econômico e técnico consiste em
proporcionar ao ser humano a passagem de condições menos humanas de
vida para condições mais humana de vida. Aquelas são definidas em
relação: “as carências materiais dos que são privados do mínimo
vital; as carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo; a
presença de estruturas opressivas, quer provenham do abuso da posse
ou do poder; a exploração dos trabalhadores e as injustiças das
transações”. As condições mais humanas de vida dizem respeito:
“a passagem da miséria à posse do necessário; a vitória sobre
os flagelos sociais; o alargamento dos conhecimentos; a aquisição
da cultura; a consideração crescente da dignidade dos outros; a
orientação para o espírito de pobreza; a cooperação no bem
comum; a vontade de paz; o reconhecimento, pelo homem, dos valores
supremos, e de Deus que é a origem e o termo deles, sobretudo, a fé,
dom de Deus acolhido pela boa vontade do homem, e a unidade na
caridade de Cristo que nos chama a todos a participar como filhos na
vida de Deus vivo, Pai de todos os homens” (Populorum Progressio -
PP 20; 21).
Em
outras palavras, pode-se afirmar que o desenvolvimento é integral na
medida em que realiza todas as dimensões do ser humano. Na dimensão
econômica ele requer a participação ativa e em condições de
igualdade no processo econômico internacional; na dimensão social
busca a evolução para sociedades instruídas e solidárias; na
dimensão política empenha-se para consolidar regimes democráticos
capazes de assegurar a liberdade e a paz; na dimensão religiosa
promove a abertura do ser humano para a transcendência (Caritas in
Veritates - CV 21; 29).
I.
Os principais desafios do desenvolvimento humano.
Hoje
o que mais afeta o modo de ser e de viver do ser humano é a
realidade cultural. Ela carrega consigo aspectos positivos, mas, ao
mesmo tempo, não contribui para que o ser humano possa desenvolver
sua vocação humana de acordo com o desígnio de Deus.
Segundo
o documento de Aparecida a humanidade passa por uma mudança de época
que traz mudanças significativas no modo dos ser humano se entender.
O lado bom dessas mudanças, dizem respeito: ’ao valor fundamental
da pessoa, de sua consciência e experiência, a busca do sentido da
vida e da transcendência (52); a necessidade de construir o próprio
destino e o desejo de encontrar razões para a existência pode
colocar em movimento o desejo de se encontrar com os outros e
compartilhar o vivido como maneira de dar de si uma resposta (53);
ênfase na experiência pessoal e vivencial leva a considerar o
testemunho como componente chave na vivência da fé (55).
Porém,
a atual cultura contém muitos elementos negativos que atingem
questões fundamentais da vida das pessoas e dos cristãos, a saber:
‘Deus é excluído do horizonte das pessoas; sobrevalorização da
subjetividade individual que enfraquece os vínculos comunitários e
propõe uma radical transformação do tempo e do espaço,dando papel
primordial à imaginação (44); ciência e tecnologia colocados
exclusivamente a serviço do mercado com critérios únicos de
eficiência, de rentabilidade e do funcional; os MCS,introduz na
sociedade um sentido estético, uma visão a respeito da felicidade,
uma percepção da realidade e até uma linguagem que quer impor-se
como autêntica cultura (45); nova colonização cultural pela
imposição de culturas artificiais, desprezando as culturas locais e
com tendência de impor uma homogeneização de todos os setores
(46); exasperada defesa dos direito individuais e subjetivos deixando
em segundo plano os direitos sociais (47); a felicidade que propõe a
avidez do mercado é o bem-estar econômico e da satisfação
hedonista (50); a cultura de consumo afeta mais as novas gerações
imprimindo nelas a lógica do individualismo pragmático e narcisista
que não a impressão de um mundo de libera de e igualdade (51).
II.
Os principais desafios do desenvolvimento econômico.
Nosso
povo ainda é atingido por graves problemas que amargam sua vida
devido a um desenvolvimento econômico que privilegia o lucro e o
consumo em detrimento da vida das pessoas e do meio ambiente. A
seguir destacamos os principais problemas sociais que tornam a vida
de milhões de pessoas menos digna. Estes problemas estão
estritamente ligados ao projeto de desenvolvimento neoliberal que
está em vigor no Ocidente.
1.
Exclusão social. Não tem como
negar que, apesar da melhora das políticas públicas adotadas pelo
governo federal, estadual e municipal, ainda existe uma multidão de
pobres e miseráveis fruto de ‘antigas e novas pobreza’ em cujos
rostos resplandece o rosto pobre e crucificado de Jesus: moradores de
rua, migrantes, enfermos, dependentes de substâncias químicas,
presos, mulheres exploradas por questão de gênero, étnica e
situação sócio-econômica, crianças e adolescentes em situação
de risco pessoal e social. Eles já não são somente explorados, mas
supérfluos e descartáveis (Diretrizes da ação evangelizadora da
Igreja no Brasil - Diretrizes, 25).
2.
Desemprego estrutural. Um dos
fenômenos da globalização econômica é o desemprego estrutural.
Ele “se caracteriza pela diminuição da mão-de-obra empregada na
indústria, pela fragmentação do processo produtivo e pela
flexibilização das relações de trabalho”(Diretrizes 26).
Essa
situação gera dois graves problemas. Um diretamente ligado à
organização dos trabalhadores, pois gera a desunião e
desmobilização dos mesmos na luta pela defesa de seus direitos. O
outro problema diz respeito à dignidade do trabalhador,
principalmente dos jovens, pois, o desemprego “destrói a dignidade
pessoal, a visão de futuro, e o sentido de lealdade e solidariedade”
(Diretrizes, 26). Além disso, o Brasil tem oferta de emprego em
vários setores da economia, mas as autoridades econômicas e
políticas não se preocuparam com a capacitação dos trabalhadores
e das trabalhadoras.
Pelo
fato da economia e a vontade política não proporcionar trabalho
para todos surge o trabalho informal. Calcula-se que quase a metade
da população economicamente ativa vive do trabalho informal. Este
“se vê submetido à precariedade das condições de emprego e à
pressão constante da subordinação, que traz consigo salários mais
baixos e falta de proteção na área de seguridade social, não
permitindo a muitos o desenvolvimento de uma vida digna”(Documento
de Aparecida - DA 71).
3.
As populações rurais desassistidas. Boa
parte das populações rurais não consegue realizar sua dignidade
humana. Elas “sofrem as consequências da pobreza, agravada pela
falta de acesso à terra própria, de financiamento adequado, de
condições gerais de vida digna e de apoio à agricultura familiar.
A reforma agrária continua sendo uma exigência diante da
escandalosa concentração de terra nas mãos de poucas pessoas e
grupos econômicos e da violência do campo” (Diretrizes, 29; DA
723).
4.
Degradação do Planeta Terra. O
Planeta Terra no Brasil está sendo agredido de diversas formas: a
biodiversidade que é alvo de cobiça internacional está sendo
destruída e muitas espécies correm o risco de serem extintas; o
acervo de conhecimentos tradicionais sobre a utilização dos
recursos naturais é objeto de apropriação intelectual ilícita por
parte de indústrias farmacêuticas e de biogenética; o aquecimento
global; o exaurimento dos recursos naturais; a natureza, a terra e a
água são tratadas como mercadorias negociáveis disputadas pelas
grandes potências (Diretrizes, 37).
III.
Os desafios do desenvolvimento técnico segundo a Cartas in Veritate.
A
reflexão sobre o desenvolvimento dos povos e a técnica faz sentido
na medida em “que o problema do desenvolvimento está estritamente
unido ao progresso tecnológico, com suas deslumbrantes aplicações
no campo biológico”. Em seguida, define a técnica como “um dado
profundamente humano, ligado a autonomia e a liberdade do homem”.
Ela “permite dominar a matéria, reduzir os riscos, poupar fadigas,
melhorar as condições de vida”. Ela é “considerada como obra
do gênio humano, o homem reconhece-se a si mesmo e realiza a própria
humanidade”. “A técnica é o aspecto objetivo do agir humano
cuja origem e razão de ser está no elemento subjetivo: o homem que
atua”. Nesse sentido, ela “manifesta o homem e suas aspirações
ao desenvolvimento, exprime a tensão do ânimo humano para uma
gradual superação de certos condicionamentos materiais. Assim a
técnica insere-se no mandato de ‘cultivar e guardar a terra’ (Gn
2, 15) que Deus confiou ao homem, e há de ser orientado para
reforçar aquela aliança entre o ser humano e o ambiente em que se
deva refletir o amor criador de Deus” (69).
1.
A mentalidade tecnicista do desenvolvimento. O
documento preocupa-se na possibilidade do desenvolvimento tecnológico
deixar-se ‘induzir’ pela “idéia de auto-suficiência da
própria técnica”. Isso acontece quando o ser humano interroga-se
“apenas sobre o como” e esquece “de considerar os muitos
porquês pelos quais é impelido a agir”. Por isso, “a técnica
apresenta-se com uma fisionomia ambígua”. De um lado, ela expressa
a “criatividade humana como instrumento de liberdade da pessoa”.
E de outro, ela “pode ser entendida como elemento de liberdade
absoluta”, isto é, “que prescinde dos limites que as coisas
tragam consigo”. Esta ‘visão muito forte hoje’, é denominada
“mentalidade tecnicista” na qual “o único critério de verdade
é a eficiência e a utilidade”. Nesse sentido, se tem uma
concepção de desenvolvimento voltada exclusivamente no fazer. (70).
2.
A tecnização da economia. A
possibilidade da “mentalidade tecnicista” acontece “nos
fenômenos da tecnização do desenvolvimento e da paz. Aquele é
“considerado um problema de engenharia financeira, de abertura dos
mercados, da redução das tarifas aduaneiras, de investimentos
produtivos, de reformas institucionais”. Tudo isso é necessário.
No entanto, “as opções do tipo técnico tem resultado apenas de
modo relativo” porque o “desenvolvimento não será jamais
garantido completamente por forças de certo modo automático e
impessoais, seja elas as do mercado ou as da política
internacional”. A razão de tudo isso, está no fato de que o
desenvolvimento só é possível com “homens retos”, isto é,
“operadores econômicos e homens políticos que sintam intensamente
em suas consciências o apelo do bem comum”. Caso contrário,
“verifica-se uma confusão entre fins e meios: como único critério
de ação, o empresário considerará o máximo lucro da produção;
o político, a consolidação do poder; o cientista, o resultado de
suas descobertas”. O resultado disso, é prática da injustiça e o
uso dos conhecimentos técnicos “em benefício dos seus
proprietário, enquanto a situação real das populações que vivem
sob tais influxos, e quase sempre na sua ignorância, permanece
imutável e sem efetivas possibilidade de emancipação” (71).
3.
Os meios de comunicação social a serviço dos interesses econômicos
e políticos. Os meios de
comunicação social muita vezes enfatizam sua natureza estritamente
técnica’. Eles ficam subordinados “a cálculos econômicos, no
intuito de dominar os mercados e, não último, ao desejo de poder
ideológico e político”. Além disso, condicionam “o modo de ler
e conhecer a realidade e a própria pessoa humana”. Por isso,
“torna-se necessário uma atenta reflexão sobre sua influência
principalmente na dimensão ético-cultural da globalização e do
desenvolvimento dos povos”. Aí reside seu sentido e sua
finalidade: “tornar-se ocasião de humanização, não só quando
(...) oferecem maiores possibilidade de comunicação e de
informação, mas também e sobretudo quando são organizados e
orientados à luz de uma imagem da pessoa e do bem comum que traduza
os valores universais”. (72).
4.
O absolutismo da técnica na manipulação da vida. Mais
do que nunca a questão social “tornou-se radicalmente
antropológica, enquanto toca o próprio modo não só de conceber,
mas também de manipular a vida, colocando-a cada vez mais nas mãos
do homem pelas biotecnologias”. Aqui entra a “fecundação in
vitro, a pesquisa sobre embriões, a possibilidade da clonagem e
hibridação humana”. Nesse campo o ser humano acha que já
desvendou todos os “mistérios porque já chegou à raiz da vida”.
Além
disso, estamos diante de “novos e poderosos instrumentos que a
cultura da morte tem à sua disposição”: ‘a chaga do aborto;
“uma sistemática planificação eugenética dos nascimentos; “a
mens eutanásia”. O que está em causa nisso tudo é uma cultura
negacionista da dignidade humana, isto é, “uma concepção
material e mecanicista da vida humana”. Quais são os efeitos de
tal mentalidade sobre o desenvolvimento? Essa mentalidade de
indiferença no que diz respeito ao que é humano e com aquilo que
não é humano levam a muitos a se escandalizar por coisas marginais
e a tolerar injustiças inauditas. “Enquanto os pobres do mundo
batem às portas da opulência, o mundo rico corre o risco de deixar
de ouvir tais apelos à sua porta por causa de uma consciência já
incapaz de reconhecer o humano”(75).
5.
A redução do ser humano a sua dimensão psíquica e neurológica. O
espírito tecnicista também se faz presente quando “considera os
problemas e as emoções ligados à vida interior somente do ponto de
vista psicológico, chegando-se mesmo ao reducionismo neurológico”.
Esta visão, muitas vezes, reduz o eu ao psíquico, e a saúde da
alma é confundida com o bem-estar emotivo”. “Na base, estas
reduções tem uma profunda incompreensão da vida espiritual e
levam-nos a ignorar que o desenvolvimento do homem e dos povos
depende verdadeiramente também da solução dos problemas de caráter
espiritual”. Isto implica conceber o ser humano como um “ser
uno”, composto de alma e corpo, nascido do amor criador de Deus e
destinado a viver eternamente”. O desenvolvimento humano acontece
quando o ser humano: “cresce no espírito; “sua alma se conhece a
si mesma e apreende as verdades que Deus nela imprimiu em gérmen”;
“dialoga consigo mesmo e com seu Criador” (76).
IV.
Jesus indica os valores que garantem o verdadeiro desenvolvimento
para toda pessoa humana: ‘vida em abundância para todos’.
Para
os cristãos Jesus é modelo de pessoa humana plena. Pela sua vida,
Ele provou que o ser humano tem condições de viver a sua missão na
terra segundo o desígnio original de Deus a seu respeito. Este tem
por finalidade a comunhão plena do ser humano com seu Criador, com o
outro como irmão e com a natureza com irmã (Gen 1, 1-29).
Jesus
vive e prega o Reino de Deus que é vida em abundância para todos
(Jo 10, 10). O conteúdo essencial do Reino de Deus é o amor a Deus
e o amor ao próximo (Mt 22, 34-40; Lc 10, 25-28; Jo 13, 34; 15, 21).
O amor ao próximo, nas relações sociais, se concretiza na prática
da justiça social: os direitos dos pobres e excluídos são
concretizados; a dignidade das pessoas é respeitada e a organização
social é estruturada em vista do bem comum, isto é, da realização
dos direitos fundamentais de todos.
Para
que o Reino de Deus penetre e transforme mais profundamente a
dimensão pessoal e social do ser humano é necessário viver e
anunciar seus principais valores.
1.
A vida como valor maior. “Eu vim
para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10). Essa
afirmação resume o sentido da missão de Jesus que é a de
construir o Reino de Deus na história da humanidade. Segundo a vida
e a prática de Jesus ‘vida em abundância’ é saúde(os doentes
são curados); comida(a partilha do pão), acolhida, valorização e
inclusão dos excluídos na sociedade e na comunidade(o pecador, a
mulher, o estrangeiro, a criança, o cobrador de impostos...);
relação sadia com os outros(amor gratuito e reconciliador e
solidário) e com Deus(Pai e Mãe amoroso e misericordioso e
disposição da pessoa em colaborar com o plano de Deus) e com o
Planeta Terra(respeito e cuidado com todos os seres criados).
Ilustrativo
sobre o valor, em primeiro lugar, da vida é o conflito entre Jesus e
os fariseus sobre a lei absoluta do sábado (Mc 23. 3, 6). Na sua
reflexão Jesus afirma que o sábado foi feito para o ser humano e
não o ser humano para o sábado. Jesus, com essa compreensão sobre
a lei do sábado, livra o ser humano da ‘alienação legal’. Toda
e qualquer lei, religiosa, política e econômica é legítima se
estiver a serviço da vida do ser humano e de todos os seres criados.
2.
O poder como serviço em vista da realização da justiça.
Poder serviço é o empenho generoso em favor do outro. É o jeito de
viver o poder que: coloca os talentos em favor dos outros (Mt 25,
24-30); que se dispõe a dar a vida pelo bem dos outros (Mc 10, 45;
Jo 10, 11). Isto acontece através da promoção da justiça. Ela é
a razão principal do exercício do poder serviço. Por isso, um
governante só é legítimo, na medida em que pratica a justiça em
favor de todos. Ele é bem-aventurado porque tem ‘fome e sede’ de
justiça (Mt 5, 6), mesmo à custa das perseguições(Mt 5, 10-11).
3.
Igualdade fundamental de todas as pessoas. Jesus
veio com a missão realizar o plano original de Deus para toda a
criação. Todos tem o direito de levar uma vida digna. Todos tem a
mesma dignidade, pois foram gerados pelo mesmo Pai e Criador. E,
portanto, tem os mesmo direitos e deveres. Por isso, Jesus libertou
as pessoas dos males provocados pela sociedade e religião excludente
daquela época. A desigualdade é criação humana. Ela é fruto de
uma determinada organização social. Por isso, ela é contrária ao
projeto do Reino de Deus, vivido e pregado por Jesus. No Reino de
Deus vivido e pregado por Jesus não tem lugar, nem espaço para a
discriminação.
4.
A solidariedade como saída para os excluídos. A
solidariedade é o caminho para conseguirmos a igualdade. O bom
samaritano é símbolo de solidariedade. Ela é o novo nome do amor
ao próximo(Lc 10, 25-37). A parábola define o jeito de amar de Deus
e de seu Filho Jesus: ir ao encontro do necessitado, seja pessoa ou
grupo, pois é fruto de uma sociedade injusta ou de uma circunstância
da vida; acolher, valorizar e dar uma solução satisfatória. A
solidariedade com os excluídos com gestos concretos é critério
indispensável para fazer parte do Reino (Mt 25, 31-46).
5.
A vida ‘sagrada’ de todos os seres criados. A
fé cristã afirma que Deus é o criador de tudo. Com a entrada da
maldade no mundo a criação também ficou prejudicada. A
ressurreição de Jesus trouxe a reconciliação de todos os seres
terrestres e celestes. Jesus inaugura um ‘novo céu e uma nova
terra’ onde se realiza a fraternidade universal( irmão sol, irmã
e mãe terra, irmão lobo... – S. Francisco de Assis) de todos os
seres criados. O Planeta Terra forma a ‘família de Deus’. Nela
um depende do outro para sobreviver. Tudo está ligado, conectado
pelo mistério divino da vida criada por Deus. Daí a necessidade de
criar a consciência de que o ser humano é parte integrante do
Planeta Terra. Ele é um nó inteligente na rede do mistério da vida
nas suas mais variadas formas que fazem parte do Planeta Terra.
Portanto, o ser humano depende totalmente dos outros nós, sem os
quais ele não consegue viver.
V.
Avaliação moral do desenvolvimento econômico.
O
atual desenvolvimento econômico que anda de mãos dadas com o
desenvolvimento técnico é o principal responsável:
a)
Pela atual situação desfavorável
dos trabalhadores do campo pois, “ele privilegia o mercado
financeiro e o agronegócio. Isso leva a expansão da pecuária
extensiva e das monoculturas de soja, eucalipto, cana-de-açúcar,
assim como a projetos do biocombustível, em detrimento da
agricultura familiar, da reforma agrária e de projetos populares
como a construções de cisternas, por exemplo, no semi-árido do
país” (Diretrizes, 37);
b)
Pela subordinação do Estado. “Atualmente o Estado encontra-se na
situação de ter de enfrentar as limitações que lhes são impostas
à sua soberania pelo novo contexto econômico comercial e financeiro
internacional, caracterizado nomeadamente por uma crescente
mobilidade dos capitais financeiros e dos meios de produção
materiais e imateriais. Este novo contexto alterou o poder político
do Estado” (CV 24);
c)
Pela degradação da natureza: “o
atual modelo econômico, que privilegia o desmedido fã pela riqueza,
acima da vida das pessoas e dos povos e do respeito racional pela
natureza. A devastação de nossas florestas e da biodiversidade
mediante uma atitude predatória e egoísta, envolve a
responsabilidade moral dos que a promovem, porque coloca em perigo a
vida de milhões de pessoas, em especial do hábitat dos camponeses e
indígenas, que são expulsos para as terras improdutivas e para as
grandes cidades para viverem amontoados nos cinturões de miséria”.
Além disso, “uma industrialização selvagem e descontrolada”
que tanto no campo quanto na cidade contamina “o ambiente com todo
tipo de dejetos orgânicos e químicos”. A mesma situação
acontece com as indústrias extrativas. É necessário “controlar e
neutralizar seus efeitos danosos sobre o ambiente circundante”,
pois “produzem a eliminação das florestas, a contaminação da
água e transformam as regiões exploradas em imensos desertos”
(DA, 473);
d)
Pelo surgimento de novos rostos de pobres e excluídos: “os
migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e refugiados, as
vítimas do tráfico de pessoas e seqüestros, os desparecidos, os
enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os tóxicos-dependentes,
idosos, meninos e meninas que são vítimas da prostituição,
pornografia de violência ou do trabalho infantil, mulheres
maltratadas, vítimas da exclusão e do tráfico para a exploração
sexual, pessoa com capacidades diferentes, grandes grupos
desempregados e de desempregadas, os excluídos pelo analfabetismo
tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes cidades, os
indígenas e afro-americanos, os agricultores sem terra e os mineiros
(DA, 402);
e)
Pela desigualdade entre as nações,
pois celebra “freqüentes Tratados de Livre comércio entre países
com economias assimétricas, que nem sempre beneficiam os países
mais pobres”;
f)
Pelo alto custo de propriedade intelectual, pois pressiona “os
países da região com exigências desmedidas em matérias de
propriedade intelectual, a tal ponto que se permitem direitos de
patentes sobre a vida em todas as formas”;
g)
Pela dependência dos organismos geneticamente manipulados. Estes
“tem mostrado que nem sempre a globalização contribui para o
combate contra a fome, nem para o desenvolvimento rural sustentável”
(CV, 67).
João
Paulo II teve a clarividência, na encíclica Solicitude Social, de
perceber a lógica que move o desenvolvimento econômico denominado
capitalista. “É necessário denunciar a existência de mecanismos
econômicos, financeiros e sociais que, embora conduzidos por vontade
dos homens, funcionam muitas vezes de maneira automática, tornando
mais rígidas as situações de riqueza de uns e da pobreza de
outros. Estes mecanismos, manobrados – de maneira direta ou
indireta – pelos países desenvolvidos, com seu próprio
funcionamento favorecem os interesses de quem os manobra, mas acabam
por sufocar ou condicionar as economias dos países menos
desenvolvidos” (SRS, 16).
O
documento olha do ponto de vista teológico o funcionamento dos
mecanismos econômicos, financeiros e sociais e observa “que entre
as nações e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do
próximo e as ‘estruturas’ a que elas induzem, as mais
características hoje parecem ser sobretudo duas: por um lado, há
avidez exclusiva de lucro; e, por outro lado, a sede de poder, com o
objetivo de impor aos outros a própria vontade. A cada um destes
comportamentos pode juntar-se, para os caracterizar melhor, a
expressão: ‘a qualquer preço’. Em outras palavras, estamos
diante da absolutização dos comportamentos humanos, com todas as
consequências possíveis”(SRS, 37).
Esse
tipo de comportamento social da parte dos detentores do poder
econômico, fruto do pecado, prejudica não somente os indivíduos,
mas também as nações. E pode-se dizer que configuram ‘estruturas
de pecado’, isto é, o “conjunto dos fatores negativos, que agem
no sentido contrário a uma verdadeira consciência do bem comum
universal e á exigência de o favorecer, dá a impressão de criar,
nas pessoas e nas instituições, um obstáculo difícil de superar”
(SRS 36). Do ponto de vista moral, “por detrás de certas decisões,
aparentemente inspiradas só pela economia e pela política, se
escondem verdadeiras formas de idolatria: do dinheiro, da ideologia,
da classe e da tecnologia” (SRS, 37).
O
remédio moral e social para superar as denominadas estruturas de
pecado é a virtude da solidariedade assim entendida: “não é um
sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos
males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo
contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar
pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos
nós somos verdadeiramente responsáveis por todos”. Esta
determinação está fundada na firme convicção de que as causas
que entravam o desenvolvimento integral são aquela avidez do lucro e
aquela sede de poder de que se falou acima. Estas atitudes e estas
‘estruturas de pecado’ só poderão ser vencidas – pressupondo
o auxílio da graça divina – com uma atitude diametralmente
oposta: a aplicação em prol do bem do próximo, com a
disponibilidade, em sentido evangélico, para ‘perder-se’ em
benefício do próximo em vez de o explorar, e para ‘servi-lo’ em
vez de o oprimir para proveito próprio “(Mt 10, 40-42; 20, 25; Mc
10, 42-45; Lc 22, 25-27).
As
exigências práticas da solidariedade podem ser resumidas nas
seguintes ações:
a)
Partilha dos bens e dos serviços com os mais fracos.
A
solidariedade, diante de uma sociedade desigual, exige a partilha dos
bens e dos serviços em favor dos mais pobres e excluídos. "A
prática da solidariedade, no interior de cada sociedade, é validada
quando os seus membros se reconhecem uns aos outros como pessoas.
Aqueles que contam mais, dispondo de uma parte melhor dos bens e de
serviços comuns, hão de sentirem-se responsáveis pelos mais fracos
e estar dispostos a compartilhar com eles o que possuem. Por outro
lado, os mais fracos, na mesma linha de solidariedade, não devem
adotar uma atitude meramente passiva ou destrutiva de tecido social
mas, embora defendendo os seus direitos legítimos, fazer o que lhes
compete para o bem de todos. (SRS, 39).
b)
Promoção da solidariedade entre os pobres.
O
melhor caminho para a solução dos graves problemas sociais que
atingem os pobres é a promoção da solidariedade entre eles. Eles
são os primeiros sujeitos na conquista de seus direitos
fundamentais.
"Sinais
positivos no mundo contemporâneo são, ainda, a maior consciência
de maior solidariedade dos pobres entre si, as suas intervenções de
apoio recíproco e as manifestações públicas no cenário social
sem recorrer à violência, mas tornando-se presentes as próprias
necessidades e os próprios direitos perante a ineficácia e a
corrupção dos poderes públicos. Em virtude do deu peculiar
compromisso evangélico, a Igreja se sente chamada a estar do lado
das multidões pobres, a discernir a justiça de suas solicitações
e a contribuir para satisfazer, sem perder de vista o bem dos grupos
no quadro do bem comum" (SRS, 39, 3).
c)
A solidariedade promove a paz social.
Sem
justiça social a paz fica cada vez mais distante. A prática da
solidariedade é uma forma de promover a justiça social. Nesse caso,
a solidariedade é entendida no sentido de colocar os bens, os
serviços, as qualidades das pessoas e dos grupos em favor da
promoção humana de todos e de cada um. Por isso, "... a
solidariedade que nós propomos é o caminho para a paz e, ao mesmo
tempo, para o desenvolvimento. Com efeito, a paz do mundo é
inconcebível se não se chegar, por parte dos responsáveis, ao
reconhecimento de que a interdependência exige por si mesmo a
superação da política dos blocos, a renúncia de todas as formas
de imperialismo econômico, militar ou político, e a transformação
da recíproca desconfiança em colaboração. Esta última,
precisamente, é o procedimento próprio da solidariedade entre os
indivíduos e entre as nações" (SRS, 39, 8).
d)
Promoção da solidariedade internacional a serviço dos pobres.
O
princípio da solidariedade se aplica também nas relações
internacionais. Tudo deve estar a serviço de todos, privilegiando os
mais pobres. "O mesmo critério aplica-se, por analogia, nas
relações internacionais. A interdependência deve transforma-se em
solidariedade, fundada sobre o princípio de que todos os bens da
criação são destinados a todos: aquilo que a indústria humana
produz, com a transformação das matérias primas e com a
contribuição do trabalho, deve servir igualmente para o bem de
todos (SRS, 39,4).
VI.
A fé inspira a militância cristã na prática da justiça social.
A
justiça como fruto do amor. Segundo
nossa fé o amor é fruto do Espírito Santo. E ele não está
desligado do amor ao próximo. Isso Jesus deixa bem claro depois de
lembrar o amor a Deus: "amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas" (Mt
22, 39-40; LC 55).
O
amor cristão tem uma identidade própria. Seus traços principais
são os seguintes: amor aos inimigos e perseguidores; amor
misericordioso; amor cheio de compaixão; amor gratuito e universal.(
LC, 55).
O
amor vivido e pregado por Jesus se converte no imperativo da prática
da justiça. "O amor evangélico e a vocação de filho de Deus,
à qual todos os homens são chamados, tem como consequência a
exigência, direta e imperativa, do respeito de cada ser humano em
seus direitos à vida e à dignidade. Não existe distância entre o
amor ao próximo e a vontade de justiça. Opor amor e justiça seria
desnaturar a ambos. Mais ainda, o sentido da misericórdia completa o
da justiça, impedindo a esta última de se fechar no círculo da
vingança".(LC). O amor que deságua na promoção da justiça
prioriza os pobres. "O amor ao homem - em primeiro lugar ao
pobre, no qual a Igreja vê Cristo - concretiza-se na promoção da
justiça. Esta nunca se poderá realizar plenamente, se os homens não
deixarem de ver nos necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um
inoportuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem
em si, a possibilidade de uma riqueza maior"(CA, 58).
Por
isso, "As desigualdades iníquas e todas as formas de opressão,
que hoje atingem milhões de homens e mulheres, estão em aberta
contradição como Evangelho de Cristo e não podem deixar tanquila a
consciência de nenhum cristão" (LC, 57).
Sentido
amplo da justiça. Como vimos a
justiça tem como fonte o amor ao próximo. E tem como objetivo,
regular as relações humanas e sociais no sentido de respeitar os
direitos de cada um. É o que diz o Sínodo dos Bispos sobre a
Justiça no Mundo: "O amor é antes de tudo exigência absoluta
de justiça, isto é, reconhecimento da dignidade e dos direitos do
próximo" (JM, 37).
Dentro
desse espírito, a Igreja define o sentido de justiça como virtude
moral. "a justiça é uma virtude moral que consiste na vontade
constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhe é devido. A
justiça para com Deus chama-se 'virtude da religião'. E para com os
homens ela dispõe a respeitar os direitos de cada um e a estabelecer
nas relações humanas a harmonia que promove a equidade em prol das
pessoas e do bem comum. O homem justo, muitas vezes mencionado nas
Escrituras, distingue-se pela correção habitual de seus pensamentos
e pela retidão de sua conduta para como o próximo"(CIC, 1807).
Sentido
da justiça social. O amor cristão
se dirige a Deus e ao próximo. O amor ao próximo se pratica na
vivência da justiça no sentido geral que nos referimos acima. Porém
o ser humano vive em relação com os outros, com a comunidade e com
a sociedade. O amor cristão praticado no âmbito da sociedade
chama-se justiça social.
"A
Igreja fala de justiça social para definir o que compete à
sociedade para garantir as condições e os meios básicos que
permite aos grupos, as associações e às pessoas obter o que lhes é
necessário segundo a sua natureza e vocação. Por isso, a justiça
social está ligada ao bem comum e ao exercício da autoridade"(CIC,
1928).
A
justiça social está intimamente ligada ao
bem comum. "É próprio da
justiça social, impor aos membros da comunidade tudo o que é
necessário ao bem comum. Porém, do mesmo modo como num organismo
vivo provemos as necessidades do corpo inteiro fornecendo a cada uma
de suas partes e a cada um de seus membros o que lhes falta para que
cumpram suas funções, assim também, em toda a coletividade, é
preciso que se dê a cada uma das partes e a cada um de seus membros
- ou seja, homens que tenham a dignidade de pessoas - aquilo que lhes
é necessário para o cumprimento de suas funções sociais"
(DR, 51).
“Todo
ser humano é portador de uma dignidade inviolável e sujeito de
direitos e deveres que o dignificam na sua relação com Deus como
filho, com os outros como irmãos e com a natureza como senhor. Mas
não é suficiente o reconhecimento formal dessa dignidade e
igualdade fundamentais. É preciso que esse reconhecimento seja
traduzido na proporção de condições concretas para realizar e
reivindicar os direitos fundamentais de todos os homens e de todas as
mulheres: direito à vida e a um padrão digno de existência,
direito à saúde e ao lazer; direito à educação, inclusive
religiosa e a escolher o tipo de educação desejada para os filhos;
direito à liberdade religiosa; direito ao trabalho e à remuneração
suficiente para o sustento pessoal e da própria família; direito de
todos à propriedade, submetida à sua função social; direito à
segurança, à preservação da própria imagem e à participação
da vida política”. (CNBB, 38, 91).
Além
disso, os direitos da pessoa pode ser ampliado: à vida; à
integridade corporal, à defesa contra a sujeição forçada da mente
( GS, 27), à proteção do ambiente físico (AO, 21), à proteção
contra a tortura moral ou física (GS, 27), aos meios suficientes
para um nível de vida digno, incluindo: alimentação, habitação,
cuidados médicos, lazer (PT, 11), aos meios para desenvolver-se por
si mesmo (GS, 69), ao trabalho em condições justas (GS, 66), sem
ofender a dignidade física (RN, 35), sem prejudicar a vida familiar
do trabalhador (RN, 16), com remuneração justa (RN, 16), à
propriedade particular dos bens necessários para liberdade pessoal e
familiar (GS, 71), à iniciativa econômica (MM, 51-58), a participar
equitativamente da riqueza nacional (AO, 16), aos serviços
indispensáveis dos Estado, em caso de: doença, invalidez, velhice,
viuvez, demissão de emprego, ou contra causa involuntária em que se
perdem os meios de subsistência (PT, 11), a conhecer e exercer seus
direitos e deveres (GS, 75), a não ser discriminado por razão de
sexo, raça, cor, condição social, língua ou nacionalidade (GS, 29
e 66).
A
sociedade humana consegue desenvolver-se adequadamente se tiver uma
autoridade legítima que persiga o bem comum. “A sociedade humana
não estará bem constituída nem será fecunda a não ser que lhe
presida uma autoridade legítima que salvaguarde as instituições e
dedique o necessário trabalho e esforço ao bem comum” (CIC,
1897). A legitimidade da autoridade está ligada ao emprego de “meios
moralmente lícitos. Se acontecer que os dirigentes promulguem leis
injustas ou tomem medidas contrárias à ordem moral, estas
disposições não poderão obrigar a s consciências” (CIC, 1903).
Para evitar que a autoridade extrapole seus limites é necessário
“que cada pode seja equilibrado por outros poderes e outras esferas
de competência que o mantenham no justo limite. Este é o princípio
do 1estado de direito, no qual é soberana a lei, e não a vontade
arbitrária dos homens” (CIC, 1904).
VII.
A fé inspira a ética pessoal do militante.
A
caridade é a essência da vida cristã. Ela “é o princípio não
só das microrelações estabelecidas entre amigos, na família, no
pequeno grupo, mas também das macrorelações como relacionamentos
sociais, econômicos, políticos”(CV, 2). Ela é dom de Deus. “a
sua nascente é o amor fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É
amor que, pelo filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual
existimos; amor redentor, pelo qual fomos recriados. Amor revelado e
vivido por Cristo” (Jo 13, 1) (CV, 2).Ele o testemunho, sobretudo,
“com a sua morte e ressurreição” (CV, 1). Deus derrama esse
amor “em nossos corações pelo Espírito Santo”(Rm 5, 5) (CV 5).
O
ser humano recebe o amor de Deus como graça, e de ‘graça’. E é
chamado por Deus a ser instrumento da graça, para difundir a
caridade de Deus e tecer redes de caridade (CV 5). Ela é “força
propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa
e da humanidade inteira” (...). É “uma força extraordinária,
que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade,
no campo da justiça e da paz” (CV, 1).
Os
mistérios da espiritualidade cristã conduzem a atitudes básicas
que conformam o comportamento ético do militante. “Falamos aqui,
em primeiro lugar, dos grandes imperativos morais do militante,
imperativos esses ligados às virtudes cardeais: prudência, (dispõe
a razão prática a discernir em qualquer circunstância nosso
verdadeiro bem e os meios adequados para realizá-lo), justiça,
(vontade constante e firma em dar a Deus e ao próximo o que lhes é
devido), temperança, (modera a atração pelos prazeres e procura o
equilíbrio no uso dos bens criados), fortaleza (dá segurança nas
dificuldades, firmeza e constância na procura do bem). Eis os
principais valores éticos do militante cristão:
-
amor pela coisa pública;
-
opção preferencial pelos pobres e excluídos;
-
espírito de serviço ao povo;
-
magnimidade ou grandeza de alma, que leva a transcender toda
mesquinharia e ser generoso no perdão e na reconciliação para com
todos, mesmo para com os inimigos;
-
fortaleza na luta, mesmo sob as ameaças de morte;
-
parresia, ou coragem de dizer a verdade, incluindo a denúncia
profética;
-
inconformismo e rebeldia contra toda injustiça;
-
sobriedade como padrão de vida (pobreza evangélica);
-
valorização do que é pequeno, mas seminal;
-
modéstia ou humildade política;
-
simplicidade das pombas, dialeticamente aliada à prudência das
serpentes (Mt 10, 16);
-
mansidão evangélica, ou seja, ânimo pacífico, que prefere lançar
mão dos meios não-violentos, por atuarem sobre as consciências e
serem acessíveis a todos (Mt 10, 16).
Falamos,
em segundo lugar, daqueles imperativos básicos que estão no fundo
dos comportamentos acima e que se situam do lado das “virtudes
teologais”: fé, esperança e caridade. Eis alguns deles:
- a
confiança da Graça, sempre mais forte que o pecado (Rm 6, 20),
graça que pode transformar os corações mais inflexíveis a abrir
as situações mais fechadas;
- o
senso da Cruz nos contextos de perseguição e d martírio,
conseqüências do empenho para instaurar a justiça e a
solidariedade;
- a
perseverança frente à adversidade e ao bloqueio dos horizontes
históricos, ‘esperando contra toda a esperança’ e acreditando
que ‘o assassino não prevalecerá para sempre desde a vítima’
(M. Horkheimer);
- a
alegria do Espírito, virtude que se mantém mesmo no seio da luta e
da provação.
Como
se vê, aqui estamos no campo da ética política, que é de per si
distinta da espiritualidade. Pois a ética consiste em imperativos e
deveres, enquanto espiritualidade vive de verdades e certezas. “Mas,
para ser efetiva e se difundir, a ética precisa estar animada de
dentro por uma espiritualidade e nela se enraizar”(P. 205-206).
VII.
A fé inspira a militância cristã na política.
Antes
de refletir sobre a ação do militante cristão é necessário tomar
consciência das mudanças que se referem ao campo da política.
a)
Descrédito acentuado e geral pela atividade política.
A
atividade política institucional passa por momento de descrédito. O
desencanto sempre existiu. Porém, nunca atingiu tamanho grau e a
extensão.
Três
razões explicam esse fenômeno do ponto de vista macro dimensional:
a) A vigência do neoliberalismo que prioriza o mercado sobre
qualquer outra instituição social, incluindo as instâncias
políticas do Estado, do parlamento e dos partidos: b) A queda do
socialismo trouxe consigo a queda da confiança nas lutas políticas
como meio de transformação do sistema. As esquerdas estão
resignadas e não conseguem consenso quanto as suas análises e
estratégias em vista de mudança estrutural; c) A mentalidade
pós-moderna arraigada em certos meios, de modo especial na
juventude, não favorece o engajamento político. A referida
mentalidade não acredita nas grandes causas ou nos grandes projetos.
Ela privilegia a subjetividade enredada no desejo consumista, no
sentimento individualizado e no hedonismo desencantado.
Diante
dessa situação emerge a pergunta, o descrédito vigente sobre a
atividade política institucional é contra a política ou contra a
forma atual de fazer política?
Três
razões objetivas postulam por mais política: a) Os problemas
sociais exigem soluções sociais e estas não tem como não passar
pela mediação política; b) Podem as vítimas da sociedade moderna
deixar de buscar vida e justiça?; c) O fermento da fé, no seio da
sociedade, sempre anseia por uma sociedade nova onde reina a justiça,
a fraternidade e a paz.
b)
Preferência pela atuação política imediata e direta.
A
tendência atual é de atuar ao nível de sociedade civil e menos na
sociedade política. Desse modo, se faz política com P maiúsculo.
Acredita-se que a ação direta e imediata frente ao Estado ou
simplesmente frente aos cidadãos é mais eficaz, pelo mesmo em
questões específicas e urgentes. Como exemplo disso, temos a ação
da Cidadania conta a fome, pela Vida de Betinho. E Viva Rio, de
Rubens César Fermandes.
c)
“Personalização” da política partidária.
Em
vista do declínio dos aparatos partidários, emerge, com força, a
figura pessoal do político. Esta vem acompanhada da
‘espetacularização' da política. Essa tendência é tão forte
que se fala em ‘videocracia’. A TV é o principal meio para fazer
a mediação entre o político e a massa. Ela é o grande ‘palanque’
eletrônico e, ao mesmo tempo, o trono. O cetro é o microfone.
Diante de uma sociedade cada vez mais conformada pela mídia, imagem
é poder ou um de seus componentes essenciais. E como nossa sociedade
tem alto grau de analfabetismo a mídia manipula a consciência
ingênua do povo.
d)
Subjetivação da política.
A
subjetivação da política corresponde à sensibilidade pós-moderna
e tem o sentido de apropriação dessa atividade pelo eu singular
psicológico (gosto e potencialidades) e espiritual (carismas e
virtudes). Isso decorre em três níveis.
a)
Afetividade. Faz-se política não só como dever, mas com prazer sem
sacrificar a dimensão afetiva (amizade, namoro, família) no altar
no bem político. É um desafio exigente.
b)
Espiritualidade. Os cristãos querem embeber sua prática política
na própria fé e nas grandes inspirações para qualificá-la. Isso
leva o militante a reservar tempo e espaço de liberdade e
gratuidade, como o da contemplação prazerosa, do louvor
transbordante e do diálogo amoroso com o Criador e Pai.
c)
O quotidiano como espaço das relações interpessoais acolhe a
política. Os comportamentos pessoais têm relevância política
democrática. Está presente em todas as esferas: família,
associação, escola, trabalho, etc. Cresce a rejeição ao poder
patriarcal em nível de família e de gênero em geral.
As
mulheres têm papel protagônico em renovar a política puxando-a
para o chão da vida concreta(p. 38.
e)
Valorização do poder local.
A
política municipal ganha cada vez mais importância. Ela é para o
cidadão comum expressão mais imediata da ‘polis’ ou a célula
política da nação. Essa tendência de descentralização não
acontece por acaso. É fruto do descrédito nas macro-estruturas e em
seu compulsivo centralismo.
A
política local tem a vantagem de estar mais próxima da maioria dos
cidadãos e, por isso, pode envolvê-los com mais facilidade. E
quando ele for exercido com qualidade serve de modelo para círculos
mais amplos. Consegue com isso um poder de irradiação sobre a
sociedade envolvente, precisamente por seu efeito de demonstração.
No
entanto, a questão aqui é como articular o poder local com o poder
central. É que aquele depende deste e, ao mesmo tempo, incide sobre
o poder central. (Fé e política: Alguns ajustes, Clodovis Boff, p.
29-30).
Em
relação ao poder público o Ensino Social da Igreja exige a
realização do bem comum. E em relação à intervenção da pessoa
no mundo da política a Igreja exige a prática da participação
como exercício da cidadania.
1.
O bem comum: princípio ético do Estado.
O
princípio do bem comum expressa qual dever ser o comportamento do
Estado em relação ao povo que governa e administra. Sua razão de
ser, de existir e de agir está vinculada ao bem comum. “A
comunidade política existe precisamente em vista do bem comum; nele
ela encontra a sua completa justificação e significado, e dele
deriva seu direito natural e próprio” (GS 75).
Em
que consiste o bem comum? Ele se realiza na medida em que se cria
“todas as condições sociais para que toda e qualquer pessoa ...
possa desenvolver plenamente a sua dignidade” (PT 53). Em outras
palavras, ele se concretiza “no conjunto de todas as condições de
vida social que consistam e favoreçam o desenvolvimento integral da
pessoa humana"(MM 62). O bem comum é superior ao bem privado,
mas inseparável do bem da pessoa. O bem comum nacional é a
responsabilidade e a própria razão de ser do Estado que só pode
realizar aquilo que promove o bem de todos sem discriminação.
A
responsabilidade primeira do Estado de promover o bem comum, não
isenta todos os cidadãos, em nível pessoal e em nível de grupos
organizados, de contribuir na promoção do bem comum. Nesse sentido,
todos devem empregar “bens e serviços na direção indicada pelos
governantes, dentro das normas da justiça e na devida forma e
limites de competência” (PT 53).
Para
compreender melhor o alcance concreto do bem comum destacamos quatro
aspectos fundamentais:
Respeitar
e garantir os direitos fundamentais de todas as pessoas.
"Em nome do bem comum os poderes públicos são obrigados a
respeitar os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana.
A sociedade é obrigada a permitir que cada um de seus membros
realize sua vocação. Em particular, o bem comum consiste nas
condições para exercer as liberdades naturais indispensáveis ao
desabrochar da vocação humana. 'Tais são os direitos de agir
segundo a norma reta da consciência, o direito à proteção da vida
particular e à justa liberdade, também em matéria religiosa"(CIC
1907).
"O
desenvolvimento é o resumo de todos os deveres sociais. É claro,
cabe a autoridade servir de árbitro, em nome do bem comum, entre os
diversos interesses particulares. Mas ela deve tornar acessível a
cada um aquilo de que precisa para levar uma vida verdadeiramente
humana: alimento, vestuário, saúde, trabalho, educação e cultura,
informação conveniente, direito de fundar um lar, etc"(CIC
1908).
Promove
a paz na sociedade. Só pode viver
dignamente e desenvolver-se integralmente quem vive pessoal e
coletivamente numa sociedade onde reina a paz. Ela consiste numa"...
ordem justa, duradoura e segura. Supõe, portanto, que a autoridade
assegure, por meios honestos, a segurança da sociedade e a de seus
membros, fundamentando o direito à legítima defesa pessoal e
coletiva" (CIC 1909).
Priorizar
os pobres nas políticas públicas. Numa
sociedade desigual, como a nossa, os que têm sua dignidade ameaçada
merecem uma atenção especial de toda a sociedade. "A sociedade
inteira deve ser solidária com todos os homens, solidária, em
primeiro lugar com o homem que tem mais necessidade de auxílio, o
pobre. A opção pelos pobres é uma opção cristã; é também uma
opção da sociedade que se preocupa com o verdadeiro bem comum"(CNBB
38, 94).
Construir
o bem comum internacional. Diante do
mundo globalizado onde as interdependências entre as nações são
cada vez maiores se faz necessário pensar e promover o bem comum em
nível internacional. Ele é denominado como o bem da comunidade das
nações (CA, 52). "As dependências humanas se intensificam.
Estende-se aos poucos à terra inteira. A unidade da família humana,
reunindo seres que gozam de uma dignidade natural igual, implica um
bem comum universal. Este exige uma organização da comunidade das
nações capaz de 'atender às várias necessidades dos homens, tanto
no campo da vida social (alimentação, saúde, educação...) quanto
em certas condições particulares que podem surgir cá ou lá, tais
como a necessidade (...) de acudir aos sofrimentos dos refugiados
(...) bem como de ajudar os emigrantes e suas famílias".
2.
Participação: princípio da prática política do cristão.
A
participação é outro princípio ético-social que orienta a
reflexão e o comportamento político-social de todos os membros da
Igreja na construção de uma sociedade justa e solidária. Ele é
definido como "o envolvimento voluntário e generoso da pessoa
nas relações sociais. É necessário que todos participem, cada um
conforme o lugar que ocupa e o papel que desempenha, na promoção do
bem comum. Este dever é inerente à dignidade da pessoa humana"
(CIC 1913). E tem como conseqüência a realização da justiça
social, condição indispensável para uma nova convivência humana
(FS p. 53).
“O
cristão tem o dever de participar também ele nesta busca diligente,
na organização e na vida da sociedade política. Ser social, o
homem constrói o seu destino, numa série de grupos particulares que
exigem, como seu complemento e como condição necessária para o
próprio desenvolvimento, uma sociedade a mais ampla, de
características universais, a sociedade política. Toda a atividade
privada deve enquadrar-se nesta sociedade ampliada e toma, por si
mesmo, a dimensão do bem comum" (OA, 24; CDSI, 189).
A
participação eficaz na construção do bem comum requer duas
condições básicas fundamentais:
Necessidade
de uma educação adequada.
A
participação qualitativa na vida política requer uma educação
adequada “tanto para o povo como, sobretudo, para a juventude a fim
de que todos os cidadãos possam desempenhar seu papel na vida da
comunidade política” (GS, 75, 4).
Uma
forma de motivar a participação política dos cristãos é a
promoção de cursos, grupos de reflexão, formação e ação
(Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil:
DGAEIB 2008-2009, 187).
Outro
elemento importante na educação política é a informação sobre
os direitos de cada um e o reconhecimento dos deveres de cada um em
relação aos outros. É bom salientar que o sentido e a prática do
dever sofrem o condicionamento do domínio de si mesmo, a aceitação
das responsabilidades e das limitações impostas ao exercício da
liberdade do indivíduo ou do grupo (OA 24, 2).
Exercício
da cidadania plena.
O
exercício da participação leva ao compromisso de transformar a
sociedade onde o bem comum é a prioridade das prioridades. O
primeiro passo é assumir as próprias responsabilidades com a
comunidade e a sociedade através da participação democrática. Não
se deixar guiar pelo individualismo e corporativismo. Isso acontece
através:
-
da co-responsabilidade na gestão dos bens públicos (escolas, postos
de saúde, orçamento municipal) através da participação nos
conselhos paritários (da saúde, da assistência social, da criança
e adolescente...). Acompanhar, apoiar, fiscalizar as Câmeras
Municipais, as Assembléias Legislativas, o Congresso Nacional, o
Poder Executivo e Judiciário para saber onde são gastos os recursos
públicos. Assim o Estado estará a serviço dos interesses da
população e não de poucos privilegiados.
-
do cuidado na escolha dos representantes do povo; avaliar o
desempenho dos partidos e acompanhar a atuação dos eleitos.
-
da promoção da formação política e do estudo dos programas dos
partidos. E de outras iniciativas (cartilhas, palestras, debates e
escolas de fé e política).
-
do incentivo da participação nos partidos, nos sindicatos e nos
movimentos sociais.
-
da intensificação da ação social em parceria com os poderes
públicos, outras Igrejas e com as ONGs (Organizações Não
Governamentais).
-
de outros instrumentos de participação ativa do povo: plebiscito,
referendo, participação nos orçamentos municipais.
-
do favorecimento da participação dos excluídos na vida da
sociedade. “... se torna
imprescindível à exigência de favorecer a participação,
sobretudo dos menos favorecidos no mundo da política na defesa de
seus direitos” (CDSI, 189; P, 1162).
3.
Espiritualidade política.
O
texto que segue é fruto da síntese livre do artigo de Clodovis Boff
sobre Espiritualidade do Militante (com enfoque pneumatolótgico) no
livro: Fé e Política, fundamentos, Pedro A. Ribeiro de Oliveira,
organizador, editora, Idéias e Letras, 2004, Aparecida, p.191-214.
Espiritualidade:
“andar segundo o Espírito. São
Paulo usa essa expressão para identificar a vida espiritual (Rm 8,
5; Gl 5, 16-18). O sentido profundo de espiritualidade é viver
segundo o Espírito de Deus. Isso diz respeito a tudo o que o
seguidor de Jesus faz até mesmo as coisas menos espirituais, como
comer, beber, repousar, trabalhar e também fazer política. A base,
a essência de toda a espiritualidade é viver a totalidade da vida
segundo o Espírito de Deus.
O
Espírito de Deus é o Espírito de Jesus, o Espírito Santo. Como
foi dito é Ele quem enviou, consagrou e ungiu Jesus. E Jesus é o
modelo de alguém que se deixou conduzir pelo Espírito de Deus. Por
isso, temos em Jesus a referência inspiradora de alguém que viveu
em plenitude segundo o Espírito. Ele através de sua palavra, de seu
exemplo, de suas promessas, de seu Reino é a luz que ilumina todo
modo de ser e de agir de seus seguidores. Numa palavra,
espiritualidade é viver do jeito de Jesus, pois Ele viveu e
concretizou o Reino de Deus guiado pela força do Espírito Santo.
E o
modo de ser, de viver e de agir de Jesus se resume numa palavra:
ágape ou amor cristão. “Pois aí está a ‘forma’ de toda a
atividade do cristão, inclusive da política. O ágape é como
a alma da militância política: ele anima, direciona e unifica toda
a prática política do cristão comprometido. Em resumo, o Espírito
nos remeta a Cristo e Cristo nos remete ao amor Agápico.
Na
verdade Cristo apontou a ágape como o “sinal de reconhecimento ou
“senha’ de seus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo
13, 35). Não só: o testemunho da ágape é o primeiro e fundamental
apostolado do cristão leigo. Lemos, com efeito, em outro passo: “Que
todos sejam um, a fim de que o mundo creia”(Jo 17, 21; cf. v. 23).
A
política para um cristão é uma forma da ágape: uma diaconia de
libertação, um serviço de amor. O político cristão é a seu modo
um pastor do povo. Assim também eram chamados os chefes dos povos no
mundo antigo, inclusive no mundo bíblico ( Ez 34; Mt 9, 36; Jo 10;
p. 199).
O
agapé ou amor cristão direciona todo o jeito de militar na
política. O jeito está ligado ao como, a maneira de fazer política.
É um jeito de fazer inspirado no espírito da ágape ou da caridade
cristã. Da fonte do espírito agápico emerge duas virtudes do
militante: amabilidade e discrição.
A
espiritualidade própria do militante em geral. A
espiritualidade do militante é a espiritualidade do cristão, pois,
antes de ser militante ele é cristão. O caminho de santificação
cristão é um só: o seguimento de Jesus Cristo. Ao falar de
espiritualidade para os leigos o Vaticano II diz que ela consiste
essencialmente na prática das três virtudes teologais, a saber, fé,
esperança e caridade (AA, 4).
Cada
cristão a partir de sua vida e de seu engajamento viverá as
virtudes teologais ao seu modo. Por isso, existe e deve existir um
estilo militante de viver a fé, a esperança e a caridade. Esse
estilo ‘militante de viver a espiritualidade cristã tem três
tratados: espiritualidade encarna no mundo; espiritualidade com
ênfase e espiritualidade dialética.
Espiritualidade
específica do político cristão: espiritualidade do poder. O
ponto anterior tratou do militante cristão em geral. Aqui vamos
refletir sobre o militante político. Aquele que lida com o poder.
Portanto, se trata da espiritualidade do poder.
Quando
se reflete sobre o poder importa ser realista. Ele não é mau, mas
carrega consigo risco e perigo, pois tem a tendência em se tornar
poder-dominação. É só olhar a história passada com seus
despotismos e imperialismos. E o momento atual com os totalitarismos
modernos e as ditaduras de vários gêneros. Nem mesmo, a democracia
do jeito que está gera entusiasmo.
Os
grandes filósofos políticos, os antigos e os novos, advertem sobre
o demonismo no poder político, enquanto todo o poder tende como que
naturalmente, para o abuso, o arbítrio e a dominação. “O poder
quer sempre mais poder”, sentenciou Hobbes.
Também
a apocalíptica, judaica e cristã, descreve com uma inigualável
força expressiva o satanismo do poder sob a forma teratológica de
figuras monstruosas, como se pode ver em Daniel e no apocalipse.
Segundo
S. Gregório Magno, no campo do poder não pode haver ingenuidade.
Ele teve experiência do poder como prefeito de Roma e embaixador em
Constantinopla e o fez de modo exemplar. Diz ele que só exerce bem o
poder aquele que conhece a sua força de seduzir e de cegar: do
contrário, será vítima Dele (p. 2007-208).
Em
vista, de colocar freios no poder, a democracia institui diferentes
mecanismos de controle e limitação de poder: divisão dos poderes,
alternância, eleições diretas, prestação de contas, etc.
Jesus
Cristo propôs uma concepção revolucionária de poder, o
poder-serviço. É um pode essencialmente diferente do
poder-dominação. Ele é convertido, exorcizado do demônio da
prepotência que costuma fazer nele sua habitação. Trata-se de um
‘evangelho’, uma boa-nova que deve ser vivida como um credo, uma
convicção profunda. “A idéia de poder-serviço deve estar
profundamente enraizada no coração do cristão militante. Para ele,
esse poder-serviço deve constituir um tema permanente de meditação
e uma fonte perene de inspiração. Trata-se de um ideal que deve
penetrar em todas as veias da alma e do corpo, para daí irradiar em
forma de atitudes e de comportamentos conseqüentes”(p. 208).
O
conteúdo do poder-serviço se desdobra em três atitudes
fundamentais:
a)
“A gratuidade,
é a despretensão ou o desinteresse com que se há de exercer o
poder. É trabalhar para o povo sem pensar em recompensas pessoais e
em outros dividendos meramente corporativos. Nada mais eloqüente
desse espírito que a parábola do ‘servo inútil’ (Lc 17, 7-10;
p. 208);
b)
A ausência de ambição. A política
é palco para a glória e escada par a autopromoção. Relembremos
que o vedetismo foi uma das tentações de Cristo: lançar-se abaixo
do pináculo do Templo, aos olhos e com o aplauso da multidão (Mt 4,
5-7). Ao contrário, o que vale aqui é a palavra do Mestre: ‘Quando
deres esmola, não toques a trombeta.. Que tua mão esquerda não
saiba o que faz a direita’ (Mt 6, 2-3);
c)
O empenho generoso em favor do outro.
Esse é o sentido evangélico do poder como serviço. É um tipo de
trabalho que: rende os talentos em favor dos outros (Mt 25, 24-30);
seja ‘amoroso’, ao modo do Bom Pastor (Jo 10); dispõe a ‘dar a
própria vida’ em benefício dos irmãos (Mc 10, 45; Jo 10, 11; Mt
16, 25). Todas essas atitudes se resumem numa virtude chamada
humildade. É uma virtude de primeira ordem na política porque é
antídoto de toda dominação. Longe da humildade, tirar o poder. Ela
o purifica, o radicaliza e o reforça na sua essência evangélica de
ser libertador.
O
poder só é serviço quando é instrumento de justiça. Ela é a
qualidade principal de um governante. O poder não tem outra
finalidade a não ser instaurar a justiça. Em outras palavras, só o
direito pode legitimar a força e nunca o contrário. Daí porque
‘fome e sede de justiça’ (Mt 5, 6), mesmo à custa das
perseguições (Mt 5, 10-11) é a grande virtude do verdadeiro
político”(p. 209).
Abreviaturas:
ONGs:
Organizações não governamentais.
P:
Documento de Puebla.
DSD:
Documento de Santo Domingo.
GS:
Documento do Vt. II, Gaudiun et Spes.
LC:
Documento Instrução sobre Liberdade Cristã e a Libertação.
EN:
Documento Evangelii Luntiandi.
CIC:
Catecismo da Igreja Católica.
MM:
Documento Mater et Magistra.
SRS:
Documento Sollicitudo Rei socialis.
OA:
Documento Octoagesima Advenians.
CDSI:
Compendio da Doutrina Social da Igreja.
OIT:
Organização Internacional do Trabalho.
LE:
Documento Laborem Execens.
PT:
doumento Pacen in Terris.
CA:
Documento Centtessimus Annos.
DSI:
Doutrina Social da Igreja.